Texto Aníbal Fernandes
Há um antes e um depois – ou vários – na vida de O Gajo. Antes e depois da Escola António Arroio; antes e depois da descoberta da viola campaniça. Nascido nos anos 70, em Lisboa, em casa dos pais a música, os livros ou a política não “faziam parte da rotina”. Tinha “o amor necessário”, mas o resto só lhe seria revelado com a entrada na famosa escola artística da capital. “Na altura, com 15 anos, idade em que nos começamos a querer afirmar como indivíduos, isso permitiu-me conhecer uma série de gente que me surpreendeu pela atitude”, diz.
Foi aí que começou a ouvir música de vários géneros. “Havia as tribos: os metaleiros, os punks, os góticos e aquela escola tinha isso muito marcado, tinha as variáveis todas”. As amizades que então criou são as que perduram, porque “foram marcantes e ficam para a vida”.
Se do ponto de vista cultural a passagem pela António Arroio se revelou decisiva na criação de “um espírito crítico” que teve “grande impacto” na sua vida, por outro permitiu o surgimento de uma consciência política. “Foi uma coisa que depois me interessou muito e que introduzi na música. Se havia uma manifestação é claro que nos juntávamos todos e lá íamos, coisa que era impensável antes de entrar para aquela escola, pois não tinha ideia do que se passava”.
O seu percurso musical manifestou-se durante duas décadas na área do punk como guitarrista e vocalista em bandas como Corrosão Caótica e Gazua. Até ao dia em que se cruzou com o som da campaniça outro momento de viragem.
Como é que acontece a descoberta da viola campaniça?
Foi durante um festival em Beja com a banda Gazua. O Paulo Colaço fez a primeira parte do concerto com um projeto chamado “Por Um Par de Meias Solas” e fiquei logo curioso com o nome. Pelo que percebi, ele conhece muito bem a linguagem tradicional, mas depois teve a ideia de ir fazendo uns temas com umas letras mais malucas, de outro género, e foi isso que me captou a atenção. Se calhar, se ele tivesse tocado um repertório tradicional eu não teria ficado tão entusiasmado e aquele momento não teria sido tão marcante. O som da viola era bonito, nunca tinha ouvido nada assim.
Mas, em concreto, o que suscitou o interesse?
Eu já andava de “antenas no ar” porque a ‘world music’ era um género do qual me estava a aproximar. Sempre ouvi rock, mas também ouvia outras coisas. Frequentava o Festival de Músicas do Mundo, em Sines, e havia uma vontade de poder fazer uma música que se encaixasse dentro desta ideia geográfica, não a alentejana especificamente, mas a portuguesa.
Daí até comprar uma campaniça…
Foram meia dúzia de dias. O meu compincha Marco Vieira estava na Escola de Música Tradicional, em Odemira, liguei-lhe quando cheguei a Lisboa e perguntei-lhe: sabes o que é uma campaniça? Ele disse que estava à espera de três violas dessas que vinham de Felgueiras, do construtor António Faria Vieira e acabei por ficar com uma delas.
E o que o encantou neste instrumento?
Eu já tinha tido aulas de guitarra portuguesa, mas o braço minúsculo exigia uma adaptação difícil e para tocar bem ia demorar anos. Quando ouvi a campaniça deu-se o ‘click’: o som era metálico e dobrado, mas tinha um braço decente (risos) e uma caixa boa, percebi que tinha corpo, uns bons graves e um braço que permitia fazer os meus acordes. Logo a adaptação não seria tão complicada.
“Subterrâneos” é o terceiro trabalho a solo de o Gajo. Depois de em 2017 ter lançado “longe do Chão” e, em 2019, o quádruplo “As quatro Estações do Gajo”, este trabalho surge com uma novidade: uma secção rítmica composta pelo baterista e percussionista José Salgueiro e o contrabaixista Carlos Barreto. Ainda não foi desta que a voz cantada apareceu. Houve a intenção de convidar Lula Pena para participar, mas tal não se tornou possível. Não põe de parte a possibilidade de cruzar a sua música com o Cante, até porque “a viola é a mesma”, não fez alterações. “As afinações é que são diferentes, mas não acho que haja afinações proibidas”, afirma o Gajo que, ainda antes de descobrir a viola campaniça, tinha a vontade de rumar ao Sul e viver no Alentejo. Quem sabe se o instrumento que escolheu não é o caminho mais próximo para realizar esse desejo?
Neste CD existem temas que sugerem ritmos tradicionais portugueses, como as chulas, do Minho, ou, na faixa “Capitão do Mar”, linhas melódicas que nos lembram o fado…
Sim, tem mais espaço. Isso é uma coisa que a utilização do contrabaixo me permitiu fazer neste disco, ter espaço e fazer linhas melódicas mais soltas, não ter que estar sempre a encher.
O trio é uma novidade.
Completamente. Antes tinha tido convidados pontuais, mas a secção rítmica é uma novidade e descobri que a viola, se tiver essa base, tem outro papel e podem sair linhas às vezes do fado, às vezes de outras coisas. Mas nada disto é consciente, é algo que eu não consigo explicar.
Falemos de referências…
O primeiro concerto que me fez querer procurar algo do género foi o da Anusha Shankar, na Gulbenkian. E foi essa capacidade que a música tem de nos transportar para a sua geografia que me ficou. Pratiquei determinado tipo de escalas para soar de uma determinada forma. Mas de cada vez que pego nesta viola e começo a brincar, o som leva-me para umas sonoridades exóticas, mediterrânicas, islâmicas, ancestrais. Pode não soar logo a Portugal – porque não é música tradicional ou fado, quanto muito roça - mas pode ser qualquer coisa de antes de Portugal ser Portugal. Estive em Mértola duas vezes no Festival Islâmico e foi lá, com o interesse que a câmara tem na herança islâmica, e com o que me mostraram, que percebi e relacionei com coisas que não conhecia. Esta viola também faz parte dessa herança.
No entanto, passado este tempo, não houve a preocupação da sua parte em descobrir como é que o instrumento é tocado da sua forma tradicional.
Pois não. Não é a afinação tradicional. Na guitarra portuguesa, que estive um ano a aprender a tocar a partir do zero, sei tocar algumas coisas, mas não evolui muito; com a campaniça não queria passar por esse processo de ir ao zero. O que fiz foi andar à procura dos meus intervalos, de corda para corda. Foi um processo longo que não está terminado porque as espessuras não são as mais corretas, umas ficam muito lassas, outras ficam muito tensas e não é fácil o equilíbrio pretendido. Estas violas têm cordas em oitavas e em uníssono, mas eu utilizo as oitavas em todas. Tive que a trazer para o meu mundo. Nunca me preocupei muito em ir ao encontro da forma tradicional, porque não era esse o caminho que eu queria percorrer, até porque já há quem o faça e muito bem.