Diário do Alentejo

Viola campaniça. O Gajo lança “Subterrâneos”

19 de abril 2021 - 12:00

Texto Aníbal Fernandes

 

Há um antes e um depois – ou vários – na vida de O Gajo. Antes e depois da Escola António Arroio; antes e depois da descoberta da viola campaniça. Nascido nos anos 70, em Lisboa, em casa dos pais a música, os livros ou a política não “faziam parte da rotina”. Tinha “o amor necessário”, mas o resto só lhe seria revelado com a entrada na famosa escola artística da capital. “Na altura, com 15 anos, idade em que nos começamos a querer afirmar como indivíduos, isso permitiu-me conhecer uma série de gente que me surpreendeu pela atitude”, diz.

 

Foi aí que começou a ouvir música de vários géneros. “Havia as tribos: os metaleiros, os punks, os góticos e aquela escola tinha isso muito marcado, tinha as variáveis todas”. As amizades que então criou são as que perduram, porque “foram marcantes e ficam para a vida”.

 

Se do ponto de vista cultural a passagem pela António Arroio se revelou decisiva na criação de “um espírito crítico” que teve “grande impacto” na sua vida, por outro permitiu o surgimento de uma consciência política. “Foi uma coisa que depois me interessou muito e que introduzi na música. Se havia uma manifestação é claro que nos juntávamos todos e lá íamos, coisa que era impensável antes de entrar para aquela escola, pois não tinha ideia do que se passava”.

 

O seu percurso musical manifestou-se durante duas décadas na área do punk como guitarrista e vocalista em bandas como Corrosão Caótica e Gazua. Até ao dia em que se cruzou com o som da campaniça outro momento de viragem.

 

Como é que acontece a descoberta da viola campaniça?

 

Foi durante um festival em Beja com a banda Gazua. O Paulo Colaço fez a primeira parte do concerto com um projeto chamado “Por Um Par de Meias Solas” e fiquei logo curioso com o nome. Pelo que percebi, ele conhece muito bem a linguagem tradicional, mas depois teve a ideia de ir fazendo uns temas com umas letras mais malucas, de outro género, e foi isso que me captou a atenção. Se calhar, se ele tivesse tocado um repertório tradicional eu não teria ficado tão entusiasmado e aquele momento não teria sido tão marcante. O som da viola era bonito, nunca tinha ouvido nada assim.

 

Mas, em concreto, o que suscitou o interesse?

 

Eu já andava de “antenas no ar” porque a ‘world music’ era um género do qual me estava a aproximar. Sempre ouvi rock, mas também ouvia outras coisas. Frequentava o Festival de Músicas do Mundo, em Sines, e havia uma vontade de poder fazer uma música que se encaixasse dentro desta ideia geográfica, não a alentejana especificamente, mas a portuguesa.

 

Daí até comprar uma campaniça…

 

Foram meia dúzia de dias. O meu compincha Marco Vieira estava na Escola de Música Tradicional, em Odemira, liguei-lhe quando cheguei a Lisboa e perguntei-lhe: sabes o que é uma campaniça? Ele disse que estava à espera de três violas dessas que vinham de Felgueiras, do construtor António Faria Vieira e acabei por ficar com uma delas.

 

E o que o encantou neste instrumento?

 

Eu já tinha tido aulas de guitarra portuguesa, mas o braço minúsculo exigia uma adaptação difícil e para tocar bem ia demorar anos. Quando ouvi a campaniça deu-se o ‘click’: o som era metálico e dobrado, mas tinha um braço decente (risos) e uma caixa boa, percebi que tinha corpo, uns bons graves e um braço que permitia fazer os meus acordes. Logo a adaptação não seria tão complicada.

 

“Subterrâneos” é o terceiro trabalho a solo de o Gajo. Depois de em 2017 ter lançado “longe do Chão” e, em 2019, o quádruplo “As quatro Estações do Gajo”, este trabalho surge com uma novidade: uma secção rítmica composta pelo baterista e percussionista José Salgueiro e o contrabaixista Carlos Barreto. Ainda não foi desta que a voz cantada apareceu. Houve a intenção de convidar Lula Pena para participar, mas tal não se tornou possível. Não põe de parte a possibilidade de cruzar a sua música com o Cante, até porque “a viola é a mesma”, não fez alterações. “As afinações é que são diferentes, mas não acho que haja afinações proibidas”, afirma o Gajo que, ainda antes de descobrir a viola campaniça, tinha a vontade de rumar ao Sul e viver no Alentejo. Quem sabe se o instrumento que escolheu não é o caminho mais próximo para realizar esse desejo?

 

Neste CD existem temas que sugerem ritmos tradicionais portugueses, como as chulas, do Minho, ou, na faixa “Capitão do Mar”, linhas melódicas que nos lembram o fado…

 

Sim, tem mais espaço. Isso é uma coisa que a utilização do contrabaixo me permitiu fazer neste disco, ter espaço e fazer linhas melódicas mais soltas, não ter que estar sempre a encher.

 

O trio é uma novidade.

 

Completamente. Antes tinha tido convidados pontuais, mas a secção rítmica é uma novidade e descobri que a viola, se tiver essa base, tem outro papel e podem sair linhas às vezes do fado, às vezes de outras coisas. Mas nada disto é consciente, é algo que eu não consigo explicar.

 

Falemos de referências…

 

O primeiro concerto que me fez querer procurar algo do género foi o da Anusha Shankar, na Gulbenkian. E foi essa capacidade que a música tem de nos transportar para a sua geografia que me ficou. Pratiquei determinado tipo de escalas para soar de uma determinada forma. Mas de cada vez que pego nesta viola e começo a brincar, o som leva-me para umas sonoridades exóticas, mediterrânicas, islâmicas, ancestrais. Pode não soar logo a Portugal – porque não é música tradicional ou fado, quanto muito roça - mas pode ser qualquer coisa de antes de Portugal ser Portugal. Estive em Mértola duas vezes no Festival Islâmico e foi lá, com o interesse que a câmara tem na herança islâmica, e com o que me mostraram, que percebi e relacionei com coisas que não conhecia. Esta viola também faz parte dessa herança.

 

No entanto, passado este tempo, não houve a preocupação da sua parte em descobrir como é que o instrumento é tocado da sua forma tradicional.

 

Pois não. Não é a afinação tradicional. Na guitarra portuguesa, que estive um ano a aprender a tocar a partir do zero, sei tocar algumas coisas, mas não evolui muito; com a campaniça não queria passar por esse processo de ir ao zero. O que fiz foi andar à procura dos meus intervalos, de corda para corda. Foi um processo longo que não está terminado porque as espessuras não são as mais corretas, umas ficam muito lassas, outras ficam muito tensas e não é fácil o equilíbrio pretendido. Estas violas têm cordas em oitavas e em uníssono, mas eu utilizo as oitavas em todas. Tive que a trazer para o meu mundo. Nunca me preocupei muito em ir ao encontro da forma tradicional, porque não era esse o caminho que eu queria percorrer, até porque já há quem o faça e muito bem.

Mas conhece músicos que tocam a campaniça?

 

Conheço desde logo o Pedro Mestre que é uma referência e que tem vindo a promover esta viola e a linguagem mais tradicional e com quem já me cruzei em palco, em Castro Verde; o Paulo Colaço; o Marco Vieira; o Tó Zé Bexiga…

 

A sua escolha é diferente daquela que o Júlio Pereira fez quando recuperou o cavaquinho ou a braguesa e que, num primeiro momento, se baseou no repertório tradicional e aprimorou a técnica de tocar os instrumentos.

 

Sim. Na verdade, não sendo eu do Alentejo, há uma coisa de que sempre estive consciente: não pisar ninguém. Se fosse alentejano talvez me sentisse mais à vontade para remexer, mas senti-me sempre um forasteiro que não queria invadir esse espaço. O que fiz foi imaginar alguém que vem para a cidade e vai incorporar novas linguagens no instrumento, que não deixa de ser alentejano com uma parte do seu sotaque original, mas com contacto com a realidade urbana.

 

Uma das coisas que marca a música tradicional alentejana é a voz do Cante e nas modas ser acompanhada pela campaniça. Nunca se sentiu tentado a utilizar a voz nos teus temas?

 

A voz foi algo de que fugi quando saí das minhas bandas onde também cantava. Acho que sou mais um instrumentista. Este projeto já integrou a voz – sob a forma de poesia – e neste disco ainda tentei trazer a Lula Pena, mas não consegui. Mas seria uma voz de que eu iria gostar, porque é muito particular. Vontade há, mas não me interessa qualquer voz. Eu não procuro só a voz, procuro todo um ser humano que tenha uma determinada expressão, uma determinada mensagem. Mas estou sempre disponível para me cruzar com o Cante. Seria um desafio. O que sairia daí é que…

 

Já tem um percurso definido no quem diz respeito à viola campaniça. Acabou de sair o CD “Subterrâneos”…

 

Que está à espera de ir para o palco para ver o que é que o público sente e se mexe com as pessoas. Espero poder ir em trio, como vai acontecer no Festival Soam as Guitarras, em Évora. Depois segue-se Setúbal e Carnaxide, em maio, no dia 15, que é o concerto de lançamento deste trabalho.

 

E o que vem aí em termos criativos?

 

Eu sou daquelas pessoas que têm “bichos-carpinteiros”, que não consegue estar quietas. Quando este disco ficou pronto e deixou de ser meu para ser de toda a gente, fiz um ‘refresh’ e comecei logo a pensar no que seria interessante desenvolver num próximo trabalho, mesmo que demore dois anos a preparar. Não tenho pressa. Sei que vou gostar de juntar cordofones diferentes. A minha relação com a campaniça acontece por coincidência, porque foi no Alentejo. Se tivesse tido esse encontro em Braga ou Amarante, poderia ter sido a braguesa ou a amarantina. Estou muito satisfeito com a campaniça, mas, lá está, a minha geografia é Portugal. Tudo o que tenha a ver com explorar o nosso património. Mas ainda não sei que abordagem farei. Depende de muita coisa.

 

Há uma nova geração na região que está, agora, a tomar contacto com o instrumento. Acha que a campaniça tem futuro?

 

Podemos dar aulas a uma turma inteira e eles até ganharem o gosto por tocar o instrumento, mas, não querendo ser negativo, para uma nova geração, a viola campaniça, com o potencial que tem e para os cativar, é importante trazer novidades. Numa das candidaturas a que concorri para a elaboração deste trabalho havia uma frase da Unesco que dizia que o património tem de ir sendo atualizado. Isto porque as novas gerações têm outra forma de olhar. Acho que seria importante ser um instrumento aberto. Para mim, quando me dizem que o instrumento se toca numa determinada posição e vejo aqueles miúdos de forma desconfortável, acho que não é bom…

 

PAULO COLAÇO. O culpado

 

A utilização da viola campaniça para a descoberta de outros sons, que não os tradicionais, não é, de todo, novidade. Paulo Colaço, pelas mãos de quem O Gajo descobriu o instrumento, há muito que lhe testa os limites. Foi num evento de bandas na Casa de Cultura de Beja que o encontro, entre ambos, aconteceu. Colaço, único protagonista do projeto “Por um Par de Meias Solas”, apresentou-se em palco com pedais de distorção e outros efeitos a tocar composições originais, mas também de monstros sagrados da música como, por exemplo, Jimi Hendrix, o que resultou numa espécie de rock alentejano. “Foi para mostrar à malta mais nova que a campaniça tem muitas potencialidades”, explica o músico bejense ao “Diário do Alentejo”. Para ele, um dos fundadores dos Adiafa, a campaniça “é a avó das guitarras elétricas”.

 

Há cerca de uma década ligado ao ensino do Cante e da viola campaniça a crianças entre os quatro e os 10 anos, na escola Mário Beirão, Paulo Colaço “descobriu” o cordofone do Baixo Alentejo quando já só era tocado por uns poucos velhotes, mas, nessa altura, era difícil o contacto direto com os artistas. Foi através do trabalho de José Alberto Sardinha e de outras gravações que lhe foram chegando que, por tentativa e erro, foi aprendendo os segredos da viola alentejana.

 

Com formação musical – em Beja, Évora e no Hot Club, em Lisboa – e enquanto professor, tem uma posição crítica em relação ao atual modo de ensino da música nas escolas. “Nestas idades, o mais importante é estimular a curiosidade e mostrar muitos géneros musicais”, caso contrário os jovens “acabam por gostar apenas daquilo que passa nas rádios e televisões”, que é uma parte muito pequena do que de bom se faz a nível mundial.

 

Só assim, no seu entender, se poderá criar novos públicos esclarecidos e libertos da linguagem ‘mainstream’: “A preocupação é dar a conhecer mais mundo, começando, obviamente, pelo nosso”.

 

Este verão vai ser tempo de “mudar de tércio” e retomar o projeto original. Paulo Colaço prepara-se para reanimar as “meia solas” e pôr as pernas ao caminho, levando a viola campaniça a viajar pelo mundo. Ficamos à espera.

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