Diário do Alentejo

Jorge Benvinda: “Este é um álbum relações”

16 de abril 2021 - 10:15

Diz que a música de radio anda “toda muito parecida” e que a pandemia lhe deixou a perceber que “temos vindo a viver sempre em confinamento, ao longo dos tempos, mas com o campo como escapatória para respirar”. Dito de outra forma: “Continuamos anulados pelos sucessivos governos e fora do mapa”. Entrevista com o músico de Beja, a pretexto do lançamento do seu último trabalho, “Vida a Dois”.

 

Texto Rita Palma Nascimento

 

Quando e porque é que surgiu a vontade de criar este projeto?

 

Quando comei a trabalhar estas músicas, o propósito era unicamente objetivar a minha vontade de criar canções para cantar com a Joana. Um registo a duas vozes, mais meloso e pessoal. Depois a ideia evoluiu e compus cerca de 30 temas, desde 2018, dos quais escolhi os dez que integram o “Vida a Dois”.

 

Queres falar-nos sobre ele?

 

Este é um álbum de relações. Todas as canções falam de uma relação e das vivências a ela associadas. Falam do amor de pai e filha, do amor de namorados, da capacidade de terminar aquilo que já não nos é saudável num determinado momento da vida, da procura por novos caminhos, mas também da nossa relação com o ambiente. Aí utilizei um polvo que habitando mares poluídos se deixou apanhar, para que fosse servido à mesa, num restaurante, envenenando quem o comia. Isto para mostrar que todos fazemos parte do circuito, ninguém é externo, todos lhe pertencemos e não há como escapar. “Vira o Frango”, por exemplo, fala sobre o momento em que deixei a restauração. Há momentos em que discordamos das visões de quem está connosco no barco, ou em que deixamos de nos identificar com a vida que estamos a levar. Num desses momentos, alguém me disse “relaxa que encaixa”. E foi isso que fiz, relaxei, encaixei e segui o meu caminho. Nesse dia, escrevi a letra “relaxa que encaixa/ mete minis a gelar/ bebe um copo e brinda à vida/ a poeira há de assentar./ Vira o frango”.

 

“Por Ti” foi o primeiro single lançado, ainda em 2020, um tema que nos conforta, com uma destinatária especial…

 

Escrevi esse tema para a Rita, a minha filha. É uma canção de amor, de força, de preparação e de incentivo para a vida. De aceitação e de luta. Quis passar uma mensagem de esperança, no sentido em que a vida não tem que ser complicada se a aceitarmos tal e qual ela se nos revela. Tendemos a fazê-lo, é certo, mas não tem que assim ser. À Rita, desejo que lute sempre pelos seus sonhos, por tudo aquilo em que acredita, que dê o melhor que há dentro dela e que siga o seu caminho, mesmo que eu possa já cá não estar. Quero que ela saiba o quanto gosto dela. Perdi a minha mãe muito cedo, tinha 15 anos, e a vida teve que seguir. E o amor, esse, perdura sempre.

 

E sobre a sonoridade e influências do álbum?

 

Pop e música ligeira, diria. A respeito de influências, não me baseei em nada, nem ninguém em especial para a composição.

 

O título do álbum é também o título de um tema inspirado num romance de José Luís Peixoto. Como é que acontece?

 

Há uns tempos tive a ideia de fazer 10 canções sobre 10 romances portugueses, mas a falta de tempo ditou que não acontecesse. A única que concretizei foi a “Vida a Dois”, já há uns anos, inspirada na história de Adelaide e Ilídio, dois personagens do romance “Livro” de José Luís Peixoto. O retrato da emigração portuguesa para França e o desencontro amoroso destes personagens. Adelaide emigra e Ilídio segue atrás dela, sem nunca a encontrar em território francês. Anos mais tarde, já de regresso à aldeia onde nasceram, voltam a cruzar-se para jamais se separarem. Um amor tardio, mas possível. Perceberão a história depois de escutar a canção.

 

Como é que tens vivido os últimos tempos?

 

O último concerto que tive foi em setembro de 2020, em Beja, no Pax Julia com o Projecto Paião. Com os Virgem Suta havia sido a 14 de fevereiro desse ano. Desde aí tenho continuado a trabalhar em canções minhas e não só. Estou a preparar um segundo álbum a solo, mas calmamente. Há momentos em que preciso de parar para que depois consiga ter mais vontade e alento para criar. Um problema que tenho é que rapidamente me aborreço com tudo o que faço. É uma coisa estranha (risos).

 

Sentes o processo criativo, no momento atual, mais refém da realidade, ou olhas para a realidade como uma oportunidade de criação do novo?

 

O autor é sempre um bocadinho egoísta, cria, em primeiro lugar, para se satisfazer a si próprio e só depois aos outros. Eu, por exemplo, não gosto de escrever só por escrever. Tem que sair de dentro, de mim. Sejam histórias ou não. Era bom retomar a estrada, os concertos, a azáfama para potenciar a criatividade. O facto de estarmos fechados apenas a trabalhar para nós castra-nos o lado criativo. Isto porque, embora exista o lado egoísta do artista, o objetivo, depois de criar e de ter essa satisfação pessoal, é oferecer. É isso que faz acontecer e que nos move. É dar e concretizar em palco. 

 

E a música? Que papel tem na forma de nos fazer olhar e sentir o novo?

 

O papel da música, nos últimos anos, tem sido o de entretenimento. A música de radio está toda muito parecida, a intervenção deixou de acontecer e não há muito que se tenha explorado fora dos sentimentos e do amor, que são temas fáceis de abordar e mais recorrentes. A música são viagens, emoções e estados de alma, são mensagens e histórias. Se as cantarmos bonitas, passarão mensagens positivas. Para mim, a música é um desabafo e uma companhia.

 

Referiste a ausência das canções de intervenção. Sentes falta delas?

 

Já escrevi mais intervenção, ultimamente não o tenho feito. As canções de intervenção, hoje em dia, são o eco dos noticiários. Começam e acabam aí. As pessoas dividem-se tanto em partidos e clubes de futebol, e olham tão cegamente e a direito para o que de menos bom acontece e é feito, que deixam de ser capazes de ver o que há de positivo. As redes sociais destilam ódio e o bullying social acontece ali, à vista de todos e com a conivência dos assistentes, sobre quem discorda da maioria. Não consigo, perante a atualidade escrever intervenção. Ser ativo politicamente nesta realidade não me deslumbra.

 

Enquanto autor e intérprete consideras que tens o dever de ir além da canção?

 

A canção é só um veículo. Considero que tenho que ir mais além da canção para mim mesmo. Não sinto o peso de ter que mudar o mundo, ou já não o sinto. Foi um trabalho interno que tive que fazer, a dada altura acreditei que podia mudar alguma coisa. Era uma utopia que demorei anos a mudar. E doeu. Hoje não sinto que tenha obrigação de fazer alguma coisa com o propósito de mudança.

 

Como é que olhas para o setor da cultura no momento atual?

 

Olho com alguma preocupação. Apesar de ser um privilegiado, porque tenho um modo de vida barato. Vivo num sítio barato, não tenho despesas elevadas, nem luxos. Aqui, a nossa vida é mais simples e é possível levá-la dessa forma. Nas grandes cidades as coisas são diferentes, o custo de vida é elevado, as despesas são acrescidas e o cenário é mais dramático. Eu ainda recebo direitos de autor e direitos conexos, mas as equipas técnicas, entre outros, não sendo autores não geram quaisquer valores. São tempos que deixarão marcas em todos. Tudo é seguro e nada é seguro. A verdade é que enquanto não houver testes em massa, suficientes para grandes volumes de testagem, ninguém se vai sentir seguro para desfrutar e usufruir de um espetáculo, ou de uma refeição num restaurante. A segurança, sentirmo-nos seguros, será aquilo que nos permitirá retirar o máximo de prazer da experiência. As condições atuais não o permitem e é preciso atuar nesse sentido para que possamos retomar a nossa atividade.

 

Já correste o país repetidamente, de norte a sul, já pisaste um sem fim de palcos, mas nunca deixaste Beja. Que significado tem para ti a cidade, a região, pessoal e profissionalmente?

 

Raízes e bases. Sinto a presença dos meus pais. Sempre gostei muito de Beja, tenho um grande carinho pela cidade. É verdade que tenho saudades do dinamismo da Beja “antiga”, que tinha sempre alguma coisa diferente para oferecer. Mas apesar disso, e de olhar para as ruas com alguma tristeza, tenho-me aqui. Gosto de sítios pequenos pela simplicidade da vida. Vivo na Cabeça Gorda, apesar de ter casa em Beja, e tenho todos os serviços mínimos de que necessito, num sítio pequenino com o campo ali ao lado. Por outro lado, a pandemia trouxe-me a perceção de que aqui temos vindo a viver sempre em confinamento, ao longo dos tempos, mas com o campo como escapatória para respirar. Continuamos anulados pelos sucessivos governos e fora do mapa. Esse é também o motivo pelo qual não penso voltar tão cedo à restauração. Os investimentos que aqui fiz foram elevados e o retorno requer a cidade no mapa turístico e no quadro de investimentos governativos. Quando penso nisto fico triste e prefiro nem pensar. Mas espero o dia.

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