Diário do Alentejo

Lembrando João Honrado, no centenário do PCP

16 de março 2021 - 17:30

Francisca Bicho, professora de História

 

A 6 de março de 2021 passaram 100 anos sobre a criação do Partido Comunista Português (1921-2021), e a longa história de vida deste Partido justifica em absoluto que aqui se evoque essa data bem como o papel desempenhado pelo mesmo, em particular na resistência e luta contra a ditadura de Salazar e Caetano que, entre outros fatores, contribuiu em muito para a sua queda em 25 de Abril de 1974 e implementação da democracia, que permite hoje a muitos a atitude de procurar esquecer o que foi essa resistência.

 

O espaço destas linhas não permite, obviamente, uma análise da contextualização em que surgiu o PCP, nem dos anos de clandestinidade e luta, mas sendo que a sua história é feita de muitos homens e mulheres que resistiram, permitimo-nos lembrar João Honrado.

 

Antes de abordarmos João Honrado, propomo-nos, contudo, algumas considerações, e em primeiro lugar, seguindo Miguel Urbano Rodrigues (jornal “o diário”, 24/9/84) a propósito de Joaquim Pires Jorge e o humanismo comunista, destacamos: “Num partido como o PCP, a entrega plena à luta produz no encadeamento das gerações muitos heróis, muita gente incomum pelo distanciamento da pequena trivialidade que mediocriza, pela coragem, pelo talento, pela abnegação, pela inteligência, pela criatividade”. É nessa linha que César Oliveira (1975, p.10) homenageava “todos os militantes do Partido Comunista que encontraram a morte às mãos dos esbirros assassinos da polícia política” e de entre eles distinguiu “os mortos do Tarrafal (em particular) Bento Gonçalves”, que a partir de 1929 reorganizou o PCP.

 

Ora, acabamos de nos referir a dois importantes nomes, e tantos outros teremos de omitir, mas, se nos situarmos à data do primeiro Congresso do PCP (1923) destacamos alguns nomes de Beja. Com efeito, na 1.ª sessão secretariou, entre outros, José Santos Chicharro, da Comuna de Beja, e houve saudações de Francisco António Moreno, de Beja, enquanto na 4.ª sessão foi eleito para a Comissão Central do Partido Manuel Martins, de Beja, com 63 votos (Oliveira, 1975.pp. 47; 74).

 

Sobre Manuel António Martins (1890-1930), o Manuel Baleizão devido à sua naturalidade, deu João Honrado o devido destaque no jornal “O Alentejo Popular” (Beja, 20/4/2006), socorrendo-se dos dados já referidos, com base na obra de César Oliveira, e dando a palavra ao filho António Pina Martins.

 

Passemos então a evocar João Honrado (Ferreira do Alentejo, 3/3/1929; Beja, 2/3/2013): - Aquele Homem alto e forte que transmitia força, mesmo na fase de maior fragilidade e a caminho do fim; - O João era aquele Homem de “coração de mel”, nas palavras do poema de Eduardo Olímpio; - O João era aquele Homem que se tratava por tu, com todo o respeito.

 

Os caminhos da memória conduzem-me ao João como se o tivesse conhecido desde sempre, o que não é verdade; conheci-o desde os tempos gloriosos de sonho e ação que se seguiram ao 25 de Abril de 1974, e após ter iniciado a minha atividade de professora, em Beja, janeiro de 1975.

 

Antes do 25 de Abril de 1974, o João andava por aí (como tantos outros), nas prisões ou na clandestinidade, a lutar por todos nós, a resistir e a enfrentar com verticalidade tudo o que representava o Estado Novo, o Salazarismo, a PIDE … procurando vencer nas cadeias ou no julgamento em tribunal, estava lá com a força da convicção e como membro do Partido Comunista Português.

 

Num texto extraordinário “O Meu Tio João”, a sobrinha Rosa conduz-nos ao percurso de João Honrado desde que com 18 anos foi preso pela primeira vez (Calado, 2014, pp. 7-8). Elaborámos sobre o mesmo como que uma tábua cronológica que facilitará a leitura, e que apresentamos.

Em 1947, João Honrado tem 18 anos e está preso em Caxias (dois meses) “por ter distribuído panfletos contra o regime de Salazar, no teatro Pax Júlia, em Beja”; 1949 (janeiro), a PIDE prende-o na festa de casamento do irmão; - prisão/tuberculose/sanatório do Caramulo; 1954, sai da cadeia e entra na clandestinidade; 1955/1962, a família refere - “deve estar bem”, “preso não está”; na Pensão Honrado “surgiam pessoas … quase ‘invisíveis’, trocavam papéis e rapidamente desapareciam”; 1958 (fevereiro), morre em Beja o pai de João Honrado. A polícia política esteve vigilante – “entendeu que o filho clandestino poderia, disfarçadamente, comparecer”; “fez uma busca na casa de Beja (provocou) um cenário de desolação!”;

 

Em 1962 é preso em Coimbra; a família sabe pela imprensa, dirige-se à sede da PIDE (na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa) e passa meses sem informações. Recebe informação de que o poderia visitar no forte de Peniche; as visitas eram preparadas, mas “a encomenda” do que a família levava era “revistada e alguns materiais censurados”; por vezes, e à chegada, o guarda informava os familiares: “o sr. Honrado está proibido de receber visitas”; 1963, notificação à família para ir “buscar à cadeia do Porto uma menor de três anos”. A filha de João Honrado nasceu na clandestinidade, esteve na cadeia com a mãe e “adoeceu gravemente”; a PIDE entregou-a à família “quase em estado de coma; decorreram oito anos de prisões e transferência entre cadeias”; Esteve doente “no hospital da cadeia de Caxias e na Penitenciária”; 1970, agosto “saiu em liberdade” (“um dia depois do funeral do ditador Salazar”); 1974, março “foi preso e torturado barbaramente”; 1974 – 25 de Abril … “o papel que teve nas várias frentes pós revolução está escrito e é do conhecimento geral”.

 

Sobre o tempo da prisão e as celas do Aljube, podemos ouvir/ler o próprio João Honrado: “Depois da meia-noite. Podia ser às duas ou três horas da madrugada. Um dos presos das 15 celas do Aljube era chamado à polícia. Estava-se na incomunicabilidade. Nas celas com duas portas. A primeira com um postigo pequeno. Que o guarda fechava quando um preso das outras celas tinha que ali passar em frente. Quando se era chamado para o interrogatório. ‘Prepare-se para ir à polícia!’

 

Mas antes. A angústia. O medo. Lá fora o bater da porta da carrinha. Todos os presos ouviam. O telefone depois tocava na sala das celas. O único som dentro de cada cela. O som que trazia o nome do preso para o interrogatório. Dentro de cada preso soa o telefone. Ou o bater de cada coração soa angustiado dentro do telefone. Os ouvidos ouvem tudo. Os olhos mesmo fechados veem o guarda. Este começa a andar. O ritmo dos passos pezinhava o interior de cada um de nós. Cada passo aproximava-se de cada cela. De todas as celas, ao mesmo tempo (…).

 

A respiração suspendia-se em cada cela. O passo andava no ar. Sem corpo. Sem pernas. O passo passava. O postigo da cela era fechado. O passo o fechava. A respiração era retomada. Em cada cela. Em cada coração. Este também respirava. Com egoísmo. Outro preso seria chamado naquela noite. Vergonha interior. Que quisemos coletiva. Para desculpar a vergonha individual. Para se dormir, nessa noite, mais descansado. Mas a manhã voltava, no fim de cada noite (…) Depois da meia-noite. O passo recomeçava a andar (…) O passo detinha-se. Era um passo que tinha voz (…) ‘prepare-se para ir à polícia!’

 

Íamos agora à frente do passo. Tornava-se invisível. Sentia-mo–lo. No bafo. Caminhávamos no corredor. Íamos para a sede da polícia. Caminhando já para além da tortura”.

 

A sua ficha prisional encontra-se publicada em “Presos Políticos no Regime Fascista IV, 1946 – 1948” (pps. 193–195), e obviamente em processo no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Sobre a vida clandestina ouçamos ainda o João em “Os Clandestinos” – “A luta antifascista na clandestinidade foi uma imposição e não foi uma escolha daqueles homens e daquelas mulheres que tiveram de ‘mergulhar’. Nas condições de terror fascista só a clandestinidade permitia continuar a desenvolver a luta ‘ilegal’ (…). No período de 1957 a 1965 foram assaltadas 40 casas clandestinas e presas 122 pessoas. A clandestinidade não visava, pois, a esconder do povo a atividade, mas tão-somente a defender os militantes das forças repressivas, pois na altura do 25 de Abril a PIDE contava com 2626 agentes e perto de 400 bufos remunerados (…)” (Honrado, 1994, p.14).

 

Como já afirmámos, o João Honrado procurava vencer nas cadeias, mas também no julgamento em tribunal. Assim, uma vez mais seguimos as palavras do próprio em sua defesa no Tribunal Plenário de Lisboa (em 23/3/1963), e publicadas em síntese:

 

Fui preso no dia 25 de abril de 1962, em Coimbra, pela Polícia. No ato da prisão, os agentes da PIDE caluniaram-me dizendo que se tratava de um ‘ladrão’, pretendendo, deste modo, esconder a sua condição de inimigos do povo e a sua ação arbitrária. Esclareci, prontamente, todas as pessoas que assistiram à minha prisão – e manifestaram por mim viva simpatia – de que sou um patriota e membro do Partido Comunista Português (…). 

Conduzido nesse mesmo dia para o Aljube de Lisboa, fui encarcerado numa cela, de reduzido comprimento e largura, onde estive durante três meses (…). Cumpri o meu dever de patriota e comunista, como fizeram muitas e muitas centenas de camaradas meus e outros antifascistas, recusando-me a fazer quaisquer declarações (…).

 

Vou ser condenado a longos anos de prisão e ‘medidas de segurança’, o que na prática conduziria à prisão perpétua se o regime não atravessasse a crise mais grave da sua história e se num curto prazo histórico o meu Parido e as demais forças patrióticas e democráticas não conduzissem o povo à vitória final sobre o fascismo (…)” (revista “Imenso Sul”, 1998, pp.71-74).

 

Na verdade, havia que aguardar pelo 25 de Abril de 1974, data a partir da qual o João continuou uma notável intervenção a todos os níveis, e sobre a qual tanto haveria a dizer. Lembramos em síntese o seu empenhamento em “salvar” o “Diário do Alentejo” (criado em 1932), contribuindo para o processo de constituição da Associação de Municípios do Distrito de Beja, que visava como grande objetivo manter o jornal e o seu papel como órgão de imprensa regional.

 

Em 2015 integrámos um grupo com Maria João Ramos, Ana de Freitas, Paula Santos e José Baguinho que trabalhou para a realização da sessão “João Honrado por ele próprio – Vídeo de Maria João Ramos e Ana de Freitas”, iniciativa que ocorreu a 18 de abril na Biblioteca Municipal de Beja. No ano do centenário do PCP, seria bom que se desenvolvesse na cidade a criação de um espaço de Memórias da Resistência.

 

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Bibliografia:

CALADO, Rosa (2014), “O Meu Tio João”, Alentejo, N.º 35 (dez-jan-fev). Lisboa: Casa do Alentejo;

DOCUMENTO (1998), Defesa de João Honrado no Tribunal Plenário de Lisboa (em 23 de março de 1963), “Imenso Sul, Uma Revista do Alentejo”, N.º 16;

HONRADO, João (1992), “Crónicas de Ver Alentejo. Beja: Edição da Associação de Municípios do Distrito de Beja;

OLIVEIRA, César (1975), “O Primeiro Congresso do Partido Comunista Português”. Lisboa: “Seara Nova”, Coleção Seara Nova,18;

PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS – Comissão do Livro Negro sobre o Regime Fascista. (1985). “Presos Políticos no Regime Fascista IV, 1946-1948”. Mem Martins: Gráfica Europam, Ldª.;

RODRIGUES, Miguel Urbano (1984), “Joaquim Pires Jorge e o humanismo comunista”, “O Diário” – opinião, 24/9/84. Lisboa.

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