Diário do Alentejo

José António Falcão: Mariana Alcoforado ou “Arte de amar”

17 de fevereiro 2021 - 16:50

Texto José António Falcão*

 

Mariana foi vista, já no tempo em que viveu, quando o seu vulto era ainda bastante impreciso para a maioria dos leitores, como um símbolo maior do “amor-paixão”, fulcro de um tema literário de repercussão internacional. Tão intensa se revelou a popularidade das “Cartas Portuguesas”, publicadas em Paris, no ano de 1669, que, ainda durante a vida da religiosa, saíram dos prelos, em diferentes capitais europeias, mais de meia centena de edições em francês, assim como traduções em inglês, flamengo e italiano. Um ‘best seller’ que encheu os bolsos do tradutor, Gabriel de Guilleragues, e dos editores, com Claude Barbin à cabeça. Alguns ecos disto não deixariam de chegar às grades do convento da Conceição, onde a freira, votada ao abandono pelo cavaleiro de Chamilly – destacado militar ao serviço de Luís XIV – após tê-la seduzido, procurava na penitência e no serviço de Deus o sublimar de um afeto sem presente, nem futuro.

 

A temática da “bela infiel”, neste caso envolvendo a traição de uma “esposa de Cristo”, esquecida na reclusão de um convento do distante Portugal, ao mesmo tempo culpada e vítima, prendeu inexoravelmente a atenção dos leitores. Era o princípio de uma vaga em torno da sua dramática história que não parou de crescer até hoje, traduzida numa vastíssima produção ficcional, poética, dramática, musical, plástica e fílmica, em parte “séria”, em parte erótica (ou até mais do que isso), na qual dominam as práticas de refiguração e transficionalidade. Real ou contrafeito, o drama da protagonista das cartas permanece arreigado, desde então, no imaginário coletivo, fazendo parte do património literário universal. Tornara-se, logo desde a sua génese, uma das grandes histórias de amor do mundo.

 

Isto não ocorreu, evidentemente, por acaso. Para uma sociedade tão cosmopolita como a do tempo do Rei Sol, fiel às convenções da corte e rendida ao culto do preciosismo, mas que apreciava os relatos de amores proibidos ou exóticos, a narrativa da paixão ingénua e fatal de uma religiosa estrangeira por um galante oficial francês, com a sua mescla de dramatismo e voluptuosidade e a ingerência de elementos profanos na esfera do Sagrado, tornou-se um poderoso íman. Significou também, o regresso ao modelo narrativo das missivas sentimentais, cuja genealogia estilística remonta, nomeadamente, a uma obra emblemática, as medievais “Cartas de Heloísa a Abelardo”, testemunhos de outro amor interdito sobre a qual a religião lançou o seu véu impenetrável.

 

Ao invés da frivolidade que caraterizava boa parte da literatura coeva, as cartas em que Madre Mariana descreve, com palavras emocionadas e veementes, não isentas de um travo acre de pecado e dor, a partir da sua clausura, os “movimentos do coração” – isto é, os impulsos da paixão – como fenómenos de excelsa densidade humana, continuariam a fazer vibrar muitas almas. Simplesmente adaptado a partir dos textos originais em português ou, pelo contrário, reinventado por Guilleragues, o artifício da “mudança de cenário” (na circunstância, para o Portugal da Guerra da Aclamação) aí patente foi empregue, a partir dos finais do século XVII, em inúmeras ficções epistolares. Isto torna bem patente o sucesso desta fórmula, que se converteu em paradigma dentro do género.

 

Nas missivas da freira, especialmente a primeira, apregoa-se um conceito do amor como bem supremo – “amor, e tudo o mais é nada” – que corresponde a um tópico literário bastante difundido à data. Podemos encontrá-lo em obras cimeiras da literatura do ‘Grand Siècle’, acalentando a sua obsidiante vocação amatória. Nos “Amores de Psique e Cupido”, obra editada em 1669, o mesmo ano em que vieram à luz as “Cartas Portuguesas”, escreveu La Fontaine: “Amai, amai, nada mais vale a pena”. Molière di-lo-á, noutros termos, na abertura de “Monsieur de Pourceaugnac”, uma ‘comédie-ballet’ estreada nesse mesmo ano: “Amai-vos, pois, com um ardor eterno; quando dois corações se amam plenamente, nada mais conta”.

 

Terá sido Mariana (ou o seu tradutor galo que, de tão libérrimo, se pode considerar outrossim autor) a exaltar tal ideia, depois seguida pelos demais cultores das letras, ou bebeu-a numa fonte coeva? Eis um problema em aberto, mas é inquestionável que o conceito singrou. Virá a culminar, algumas décadas mais tarde, sob a égide do Iluminismo, em obras como as “Cartas Persas”, de Montesquieu (1721), “Cartas Peruanas”, de Madame de Graffigny (1747), e “Júlia ou a Nova Heloísa”, de Jean-Jacques Rousseau (1761). A nossa freira, a par de Zilia, a peruana, ou de Julie d’Étange, a “Nova Heloísa”, entre outras figuras de recorte mítico, converteu-se num dos protótipos, mais ou menos explícitos, de toda uma galeria de “heroínas do amor”.

 

Não passaria também despercebido como as missivas da apaixonada portuguesa se enraizavam numa velha tradição literária das casas femininas, em que monjas e freiras evocavam, através da prosa ou do verso, visões e outras experiências da vida mística, por vezes raiando a pulsão sexual. Aliás, se o atentado aos votos de castidade a que se alude nas cartas de Mariana equivalia a um sacrilégio, isto é, “tratamento irreverente ou profanação de coisa sacra”, como sublinhavam os manuais de confessores da época, crime punível com a morte do infrator, segundo as “Ordenações do Reino”, o que horrorizava muitos espíritos, outros faziam dele um fetiche que alimentava o imaginário masculino.

 

O mito da freira perversa ou alvo de corrupção, libidinosamente subtraída à hierogamia e rebaixada ao estatuto de mero objeto erótico, virá a nutrir a imaginação de sucessivas gerações, o que teve inúmeras ressonâncias ora de pendor moral, ora de pendor sexual; cabe destacar, entre eles, já na sequela da Revolução Francesa, “A Religiosa”, de Denis Diderot (1796), romance de intenção anticlerical e reformista, e, em clave libertina e pornográfica, “Justine ou os Infortúnios da Virtude”, do marquês de Sade (1791).

 

Todavia, o que mais importa realçar, neste oceano de formas do pensamento, é que as “Cartas Portuguesas” configurarão um digníssimo modelo, imitado sem cessar, das missivas amorosas e, melhor ainda, de afirmação da mais sublime ‘ars amandi’. Os ideais da supremacia absoluta da paixão transformaram-se em cânones de uma arte amatória que tocaria, de perto, as opções estéticas – e os programas culturais e políticos – de sucessivas gerações românticas. Stendhal deixou-o bem claro num trecho célebre da “Vida de Rossini” (1823): “Devemos amar como a Religiosa Portuguesa, e com aquela alma em fogo de que ela nos deixou uma marca tão viva nas suas cartas imortais”.

 

* Membro da Academia Portuguesa da História e da Academia Nacional de Belas-Artes

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