Porque é que isto ainda não se cumpriu?
Estamos muito melhor do que já estivemos. Mas, não importa só nomearem-se equipas. É preciso haver profissionais competentes para as equipas. Esta é uma área altamente diferenciada. Altamente especializada. Altamente científica. Ciência que implica o tratamento adequado de sintomas, o uso rigoroso de fármacos mas também a comunicação adequada e humanização. Temos de ter competências nestes níveis para podermos trabalhar nesta área. Não podemos dizer que em termos transversais temos acesso aos cuidados paliativos. Há ainda uma desigualdade muito grande: 70 por cento das pessoas que precisam de cuidados paliativos ainda não têm acesso a eles.
Qual é a capacidade de resposta na nossa região?
A nossa região - o Baixo Alentejo - tem oficialmente reconhecidas duas equipas comunitárias de cuidados paliativos. Uma para o concelho de Mértola e outra equipa, que é a Beja + (onde me integro), que abrange 10 dos 13 concelhos integrados na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo. Esta equipa está subdimensionada. Mas melhor do que já estivemos. Temos agora duas médicas e duas enfermeiras, sendo que uma médica está a tempo parcial. A nossa equipa tem uma forma de organização baseada na comunidade, nos cuidados de saúde primários. Em cada um dos 10 centros de saúde temos enfermeiros de referência que dão uma resposta extraordinária, mais próxima às pessoas que acompanhamos. E que são o ponto de acesso da equipa.
E o que sucede quando as pessoas são referenciadas para os cuidados paliativos?
Cada pessoa que é referenciada, é avaliada, diretamente por nós, pelo enfermeiro de referência ou por videochamada, de modo a que, mesmo em fase covid-19, essa pessoa não fique sem resposta e sem qualquer tipo de acompanhamento. Fica com acesso a nós pelo telefone, em qualquer momento que precise. Apesar de sermos uma equipa tão pequenina, assumimos, há cerca de 10 anos, quando a equipa foi criada, o atendimento telefónico 24 horas por dia: assumimo-lo pela consciência empírica, mas que também está provada cientificamente, que as pessoas que estão a ser acompanhadas ganham uma sensação de grande segurança por ter contactável a qualquer momento uma equipa especializada que os conhece e que os sabe tratar.
Há muitos contactos?
Este ano já tivemos, na nossa equipa, mais de 4100 contactos telefónicos. Isto diz muito da forma profissional como esta equipa está envolvida com a sua missão. Uma equipa especializada, como é o caso da nossa, tem a responsabilidade de prestar cuidados diretos aos doentes e famílias, mas tem ainda uma enorme área de intervenção que é assessoria aos outros profissionais. O acesso a cuidados de saúde adequados a este nível também depende de haver mais formação nesta área para todos os profissionais de saúde. Qualquer profissional pode pedir a avaliação de uma situação para se propor uma intervenção. Isto implica que todos os profissionais devem estar despertos para a possibilidade de uma resposta diferente.
E estão?
A consciência sobre estas questões entre os profissionais é cada vez maior mas há ainda muito a melhorar.
Em fase de pandemia que vivemos e da desproteção que isso gera, especialmente junto dos mais velhos, gostaria que, com base na sua experiência, nos falasse da realidade atual nos lares, sendo que, já vinha de trás uma realidade de carência de recursos humanos…
A pandemia evidenciou que, afinal, os lares precisavam de ter muito mais dotação de pessoal. Quer auxiliares, quer pessoal técnico. Agora percebemos que afinal os lares são locais onde se prestam cuidados também de saúde. Já sabíamos há muito tempo, mas agora é que se tornou claro para muita gente. Quem se dedica a trabalhar em lares sabe que se trata de pessoas doentes, com necessidades de cuidados específicos de saúde, e que precisam ser cuidadas lá onde estão. Qualquer deslocação destas pessoas é um acréscimo de sofrimento.
Mas falta pessoal?
A falta de pessoal ficou muito a nu com a pandemia. Os profissionais de saúde, afinal, são muito escassos nestas instituições. Os próprios hospitais também evidenciaram falta de pessoal. Profissionais que estavam nos lares e nas unidades de cuidados continuados acabaram por ganhar a possibilidade de serem mobilizados com um contrato diferente para os hospitais. Precisamos urgentemente de perceber como os cuidados de saúde às pessoas com muita idade, dependentes, frágeis e com várias doenças, são cuidados de primeira. Trabalhar num lar tem de ser valorizado, tanto do ponto de vista social, como financeiro, como de competência. Não podemos ser coniventes com baixas expectativas de qualidade. Falamos de cuidados a pessoas que estão à nossa mercê. Por esta razão, a exigência tem de ser ainda maior. Estamos a falar de trabalho altamente especializado que é tratado como trabalho de segunda.
Os idosos, especialmente os mais fragilizados, são isolados dos contactos familiares e sociais para evitar a infeção por SARS-Cov2. Muitas vezes sem perceberem ao certo o que se está a passar. Este é o cuidado mais adequado que se pode dar a uma pessoa a quem lhe resta, à partida, escasso tempo de vida?
Penso que, pelo menos, é preciso fazer essa reflexão. Todas as regras criadas pela Direção-Geral de Saúde são importantes no sentido de reduzir ao máximo a propagação do vírus junto de pessoas que podem vir a falecer em consequência da doença. O preço que cada pessoa mais velha teve pagar para não ter covid-19 é muito alto. Porque teve de abdicar da sua família. Dos momentos partilhados com quem ama. E, pelo menos, nós temos de refletir sobre isso. Estas pessoas podem não tirar partido do facto de serem protegidas da covid-19. O drama para estas pessoas pode não ser ter covid-19 mas sim não viver este último tempo da sua vida da forma como desejam.
E tem sido feito alguma coisa para dar resposta a esse problema?
No acompanhamento que fazemos temos testemunhado que tem havido um esforço para organizar um encontro, uma possibilidade de despedida quando nos apercebemos que está a chegar o fim. É pouco, mas é alguma coisa. Ter a noção que o final está muito próximo e não poder viver aqueles momentos de forma mais presente representa um sofrimento atroz. É um problema, já presente, de lutos muito marcados por este contexto. Sabemos ainda pouco das consequências emocionais que isto vai trazer. Temos muito mais pessoas a morrer todos os dias. Não só de covid-19. Afastadas das suas relações mais próximas. Não só em lares, mas também em hospitais. Sem alívio sintomático e sem apoio do ponto de vista emocional.
Se houvesse recursos, profissionais especializados na área, estas equipas tinham de ser reforçadas no contexto em que vivemos. Não havendo, tudo se torna mais difícil. As equipas de cuidados paliativos, além de intervirem junto do doente e da sua família, deveriam estar envolvidas no modo de pensar a organização e planeamento de cuidados no atual contexto de pandemia.