Diário do Alentejo

“Temos muito mais pessoas a morrer sem apoio”

11 de janeiro 2021 - 10:45

Enfermeira, mestre em cuidados paliativos, coordenadora da Equipa Comunitária Beja+, da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo (Ulsba), Catarina Pazes foi recentemente eleita presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP). Mais do que uma profissão, assume os cuidados paliativos como uma missão. Porque, diz, os outros somos nós.

 

Texto Joana Gomes

 

Em discurso direto e em nome próprio, Catarina Pazes fala do que considera ser uma responsabilidade de todos: “Não temos uma rede de cuidados de saúde que consiga fazer face às dificuldades que existiam e que agora se agudizaram”. Ao sublinhar a importância de priorizar os cuidados paliativos, especifica que “temos muito mais pessoas a morrer todos os dias. Não só de covid-19. Sem alívio sintomático e sem apoio do ponto de vista emocional”.

 

Tendo em conta a nova realidade pandémica que estamos a viver, gostava que nos traduzisse uma afirmação sua que passo a citar: “A covid-19 não criou os problemas dos cuidados aos mais velhos, mais dependentes e em fim de vida. Evidenciou-os”.

Ao termos de proteger estas pessoas de uma doença que pode ser fatal, ficou mais a descoberto que, afinal, os cuidados de saúde garantidos às pessoas mais velhas são muito frágeis. Nomeadamente pessoas que estão institucionalizadas em lares. Mas também na comunidade. Não temos uma rede de cuidados de saúde que consiga fazer face às dificuldades que existiam e que agora se agudizaram. De acordo com a minha experiência de trabalho em cuidados paliativos na comunidade, apercebo-me de que não temos criadas condições adequadas à vivência do fim da vida com qualidade. Estou a falar dos últimos anos da nossa vida, quando estamos mais dependentes, mais frágeis, mais doentes. Não temos criadas as condições necessárias para vivermos esse tempo de forma confortável.

 

E numa fase em que estamos mais vulneráveis...

Nós somos mais velhos, durante mais tempo. Mas também somos mais frágeis, mais doentes, mais dependentes. Ganhámos tempo mas desconfortável. Os cuidados paliativos não estão a ser garantidos às pessoas. Todos nós temos direito a isso. E temos de ter essa consciência para o podermos exigir. Esta é uma exigência necessária e urgente. Nós não temos garantido alívio do sofrimento em situações difíceis de doença. Aqui não existe um culpado. Esta é uma culpa de todos nós. Estamos a ser coniventes com esta situação. Não tem sido prioridade a forma como se vive o fim da vida. Nem dentro das instituições dos cuidados de saúde. Nem fora, enquanto sociedade. Todos queremos garantia de equipamentos, de mais hospitais, mais serviços de urgência, mais médicos, mais enfermeiros, mas não temos a noção de que não temos garantida competência para cuidar da fragilidade, da dependência no fim de vida como todos gostaríamos: confortável, digna, humanizada. Viver mais anos não significa que estamos a vive-los bem. Não temos essa garantia.

 

Se consultarmos a legislação existente no nosso país ficamos com a noção de que está lá tudo. A garantia em todo o território nacional de cuidados paliativos nos três níveis de cuidados do Serviço Nacional de Saúde (SNS): primários, hospitalares e continuados. O que é que não está a funcionar?

Já existe muita legislação. Por exemplo: estão na lei os cuidados paliativos como direito. Mas, para que isto seja viável, é preciso ser uma prioridade. Política e da sociedade. Nós não queremos pensar na nossa finitude, na doença, na fragilidade, na dependência. Como não pensamos sobre isso, não reclamamos prioridade para questões que são fundamentais para a nossa qualidade de vida. Do meu ponto de vista, para que esta questão ganhe força é preciso haver vontade política. Mas também é preciso que a sociedade o reclame. A legislação garante os cuidados paliativos a todos os que deles precisam. Temos inscrita na legislação a garantia de cuidados de continuidade à pessoa em fim de vida. A mesma lei expressa que é má prática o sofrimento disruptivo, sem acesso ao alívio desse sofrimento. É má prática provocar sofrimento através de medidas desproporcionadas, que diz respeito à obstinação terapêutica. Existe legislação que salvaguarda o acesso a cuidados paliativos nos três níveis de organização do nosso Sistema Nacional de Saúde. 

Porque é que isto ainda não se cumpriu?

Estamos muito melhor do que já estivemos. Mas, não importa só nomearem-se equipas. É preciso haver profissionais competentes para as equipas. Esta é uma área altamente diferenciada. Altamente especializada. Altamente científica. Ciência que implica o tratamento adequado de sintomas, o uso rigoroso de fármacos mas também a comunicação adequada e humanização. Temos de ter competências nestes níveis para podermos trabalhar nesta área. Não podemos dizer que em termos transversais temos acesso aos cuidados paliativos. Há ainda uma desigualdade muito grande: 70 por cento das pessoas que precisam de cuidados paliativos ainda não têm acesso a eles.

 

Qual é a capacidade de resposta na nossa região?

A nossa região - o Baixo Alentejo - tem oficialmente reconhecidas duas equipas comunitárias de cuidados paliativos. Uma para o concelho de Mértola e outra equipa, que é a Beja + (onde me integro), que abrange 10 dos 13 concelhos integrados na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo. Esta equipa está subdimensionada. Mas melhor do que já estivemos. Temos agora duas médicas e duas enfermeiras, sendo que uma médica está a tempo parcial. A nossa equipa tem uma forma de organização baseada na comunidade, nos cuidados de saúde primários. Em cada um dos 10 centros de saúde temos enfermeiros de referência que dão uma resposta extraordinária, mais próxima às pessoas que acompanhamos. E que são o ponto de acesso da equipa.

 

E o que sucede quando as pessoas são referenciadas para os cuidados paliativos?

Cada pessoa que é referenciada, é avaliada, diretamente  por nós, pelo enfermeiro de referência ou por videochamada, de modo a que, mesmo em fase covid-19, essa pessoa não fique sem resposta e sem qualquer tipo de acompanhamento. Fica com acesso a nós pelo telefone, em qualquer momento que precise. Apesar de sermos uma equipa tão pequenina, assumimos, há cerca de 10 anos, quando a equipa foi criada, o atendimento telefónico 24 horas por dia: assumimo-lo pela consciência empírica, mas que também está provada cientificamente, que as pessoas que estão a ser acompanhadas ganham uma sensação de grande segurança por ter contactável a qualquer momento uma equipa especializada que os conhece e que os sabe tratar.

 

Há muitos contactos?

Este ano já tivemos, na nossa equipa, mais de 4100 contactos telefónicos. Isto diz muito da forma profissional como esta equipa está envolvida com a sua missão. Uma equipa especializada, como é o caso da nossa, tem a responsabilidade de prestar cuidados diretos aos doentes e famílias, mas tem ainda uma enorme área de intervenção que é assessoria aos outros profissionais. O acesso a cuidados de saúde adequados a este nível também depende de haver mais formação nesta área para todos os profissionais de saúde. Qualquer profissional pode pedir a avaliação de uma situação para se propor uma intervenção. Isto implica que todos os profissionais devem estar despertos para a possibilidade de uma resposta diferente.

 

E estão?

A consciência sobre estas questões entre os profissionais é cada vez maior mas há ainda muito a melhorar.

 

Em fase de pandemia que vivemos e da desproteção que isso gera, especialmente junto dos mais velhos, gostaria que, com base na sua experiência, nos falasse da realidade atual nos lares, sendo que, já vinha de trás uma realidade de carência de recursos humanos…

A pandemia evidenciou que, afinal, os lares precisavam de ter muito mais dotação de pessoal. Quer auxiliares, quer pessoal técnico. Agora percebemos que afinal os lares são locais onde se prestam cuidados também de saúde. Já sabíamos há muito tempo, mas agora é que se tornou claro para muita gente. Quem se dedica a trabalhar em lares sabe que se trata de pessoas doentes, com necessidades de cuidados específicos de saúde, e que precisam ser cuidadas lá onde estão. Qualquer deslocação destas pessoas é um acréscimo de sofrimento.

 

Mas falta pessoal?

A falta de pessoal ficou muito a nu com a pandemia. Os profissionais de saúde, afinal, são muito escassos nestas instituições. Os próprios hospitais também evidenciaram falta de pessoal. Profissionais que estavam nos lares e nas unidades de cuidados continuados acabaram por ganhar a possibilidade de serem mobilizados com um contrato diferente para os hospitais. Precisamos urgentemente de perceber como os cuidados de saúde às pessoas com muita idade, dependentes, frágeis e com várias doenças, são cuidados de primeira. Trabalhar num lar tem de ser valorizado, tanto do ponto de vista social, como financeiro, como de competência. Não podemos ser coniventes com baixas expectativas de qualidade. Falamos de cuidados a pessoas que estão à nossa mercê. Por esta razão, a exigência tem de ser ainda maior. Estamos a falar de trabalho altamente especializado que é tratado como trabalho de segunda.

 

Os idosos, especialmente os mais fragilizados, são isolados dos contactos familiares e sociais para evitar a infeção por SARS-Cov2. Muitas vezes sem perceberem ao certo o que se está a passar. Este é o cuidado mais adequado que se pode dar a uma pessoa a quem lhe resta, à partida, escasso tempo de vida?

Penso que, pelo menos, é preciso fazer essa reflexão. Todas as regras criadas pela Direção-Geral de Saúde são importantes no sentido de reduzir ao máximo a propagação do vírus junto de pessoas que podem vir a falecer em consequência da doença. O preço que cada pessoa mais velha teve pagar para não ter covid-19 é muito alto. Porque teve de abdicar da sua família. Dos momentos partilhados com quem ama.  E, pelo menos, nós temos de refletir sobre isso. Estas pessoas podem não tirar partido do facto de serem protegidas da covid-19. O drama para estas pessoas pode não ser ter covid-19 mas sim não viver este último tempo da sua vida da forma como desejam.

 

E tem sido feito alguma coisa para dar resposta a esse problema?

No acompanhamento que fazemos temos testemunhado que tem havido um esforço para organizar um encontro, uma possibilidade de despedida quando nos apercebemos que está a chegar o fim. É pouco, mas é alguma coisa. Ter a noção que o final está muito próximo e não poder viver aqueles momentos de forma mais presente representa um sofrimento atroz. É um problema, já presente, de lutos muito marcados por este contexto. Sabemos ainda pouco das consequências emocionais que isto vai trazer. Temos muito mais pessoas a morrer todos os dias. Não só de covid-19. Afastadas das suas relações mais próximas. Não só em lares, mas também em hospitais. Sem alívio sintomático e sem apoio do ponto de vista emocional.

Se houvesse recursos, profissionais especializados na área, estas equipas tinham de ser reforçadas no contexto em que vivemos. Não havendo, tudo se torna mais difícil. As equipas de cuidados paliativos, além de intervirem junto do doente e da sua família, deveriam estar envolvidas no modo de pensar a organização e planeamento de cuidados no atual contexto de pandemia.

As equipas covid-19 integram equipas de cuidados paliativos?

Não. E isso é uma preocupação. Por um lado, as equipas estão subdimensionadas para a quantidade de doentes. Mas por outro, os profissionais de cuidados paliativos estão habilitados para o controlo e alívio sintomático, mas também ao nível da comunicação, do apoio, do planeamento de cuidados e até das decisões éticas que surgem no fim da vida. Há vários estudos, especialmente estrangeiros, que mostram a importância de juntar as competências dos cuidados paliativos às 'task force', às equipas que estão a dedicar-se a planear e a prestar cuidados às pessoas em situação de surtos, de pandemia.

 

"O número de pessoas que precisa de cuidados paliativos é imenso"

A recém-eleita presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos, Catarina Pazes, é especialista em enfermagem comunitária e em enfermagem médico-cirúrgica para pessoas em situação paliativa. É professora adjunta convidada na Escola Superior de Saúde do Instituto Politécnico de Beja (IPBeja) e colabora no mestrado em Cuidados Paliativos da Escola Superior de Enfermagem de Castelo Branco. Da sua, eleita para o triénio 2021-2023, sob o lema “Cuidados Paliativos para Todos”, fazem ainda parte Guida Ascensão, psicóloga, Lúcia Gonçalves, enfermeira, e Cristina Galvão, médica, todas profissionais da Ulsba.

 

À pergunta sobre qual vai ser a sua missão prioritária neste novo cargo, Catarina Pazes responde que essa não é uma missão sua, mas da equipa. Ao referir-se à honra por estar agora neste cargo, salientou que se propôs a este lugar “precisamente pelo sentido de missão. Mas também pelo respeito e pela consideração enorme que tenho por esta associação. Primeiro enquanto cidadã. E enquanto enfermeira paliativista".

 

Segundo Catarina Pazes, trata-se de uma associação "extraordinariamente importante" para o país, pela defesa dos cuidados paliativos e das pessoas que precisam destes cuidados. E ainda dos profissionais que trabalham na área. "A missão desta equipa é dar continuidade à dinâmica e trabalho junto da comunidade, dos profissionais e dos responsáveis e decisores, políticos, de ensino, ordens profissionais, etc., no sentido de melhorar o acesso aos cuidados paliativos. Mas também tornar mais evidente a necessidade de criar melhores condições para que estes cuidados sejam uma garantia e não dependam fundamentalmente da boa vontade".

 

Ou seja, prossegue, que estes cuidados sejam "efetivamente" uma prioridade no Sistema Nacional de Saúde. "O número de pessoas que precisa de cuidados paliativos é imenso. E agora percebemos que não depende só do número de pessoas que morre, nem só do número de pessoas idosas. Depende de pessoas com necessidades paliativas. Desde a pediatria até à terceira idade". JG

 

"Os cuidados paliativos devem existir consoante a necessidade de alívio do sofrimento"

 

O que são, ao certo, cuidados paliativos?

É uma área especializada dos cuidados de saúde que se dedica a atender a todo o sofrimento ou todo o mal-estar que decorra de uma situação de doença grave e/ou incurável. O que faz com que os cuidados paliativos devam ser chamados são as necessidades que as pessoas têm de adequação de cuidados ao nível do sofrimento do ponto vista mais global, ou holístico, por exemplo físico, psicológico, social, familiar, espiritual. Por essa razão, falar em cuidados paliativos é falar de trabalho em equipa.

 

Cada área de atuação específica preenche uma necessidade?

Sim. Uma equipa de cuidados paliativos é constituída por várias pessoas a trabalhar de forma articulada em termos de tomada de decisão de modo a que a resposta seja o resultado do que é pensado pelas várias áreas científicas. Não há uma divisão delimitada entre o que faz o médico, ou o enfermeiro, ou outro técnico. É uma equipa que partilha as tomadas de decisão em função da abordagem a cada doente. É uma equipa que em conjunto encontra soluções para e com aquela pessoa, para e com aquela família.

 

Quem é que pode beneficiar dos cuidados paliativos?

Todas as pessoas que estão em intenso sofrimento decorrente de uma doença grave e/ou incurável. Não existe uma altura que se possa definir, à priori, para os cuidados paliativos. Podem entrar quando há tratamento ativo para a doença e mesmo quando há expectativa de cura. Devem existir consoante a necessidade de alívio do sofrimento ou no planeamento para essa realidade. Não dependem do tempo de vida, da doença, do diagnóstico, da idade. Dependem da necessidade do doente e da sua família. A partir do momento em que há estabilização dos sintomas, ou melhoria, pode deixar de haver necessidade de manter os cuidados paliativos.

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