“VAI HAVENDO UM DECRÉSCIMO”
Para António José, 64 anos, cantador no grupo coral Rancho de Aldeia Nova de São Bento, a “elevação” do cante a Património da Humanidade foi “excecional”, porque lhe trouxe uma “dimensão completamente diferente” da anterior: “Houve dinamização e proliferação dos grupos e apareceram muitos jovens a cantar”. Mas existiu também um lado negativo: “Houve um entusiasmo inicial, mas agora vai havendo um decréscimo. Ainda assim, o cante está vivo. Esta fase da pandemia é que veio cortar quase toda a totalidade da saúde do cante, que estava a viver um momento muito bom”.
A pandemia, salienta, “foi uma machadada muito grande” para o grupo coral Rancho de Aldeia Nova de São Bento: “Veio estragar o entusiasmo, alguns espetáculos já foram adiados duas vezes. Estão agora marcados para fevereiro de 2021, mas duvido que se consigam concretizar. O cante vai sobreviver à pandemia, mas pode sair beliscado”.
José Rosa Valente, de 82 anos, “cantador da velha guarda” nos Ganhões de Castro Verde, partilha da mesma opinião e refere que “infelizmente, os mais novos pensam que tudo aquilo que os antigos deixaram está mal. O cante alentejano, depois de promovido a Património da Humanidade, tem atraído muita gente que foge da origem do cante. As letras são as mesmas, mas acompanhadas por instrumentos ficam diferentes. O cante é somente a voz dos grupos”.
Cantador de 26 anos, José Diogo atualmente não faz parte de nenhum grupo, mas continua a trabalhar indiretamente com alguns corais. Fala da classificação da Unesco como um “reconhecimento e um privilégio”, que trouxe coisas positivas: “Passou a existir mais promoção, mais impacto e levou a que muitos jovens começassem e a cantar e interessar-se pelo tema”.
Segundo refere, a quase completa paragem de atividade desde o março trouxe inúmeros problemas à sobrevivência de diversos grupos corais. “Alguns já atravessavam uma fase complicada, há vários anos, por estarem envelhecidos e não terem jovens para lhe dar continuidade. A covid-19 pode prejudicar muito, mas talvez esteja enganado”, salienta.
José Diogo começou a cantar com três anos num grupo coral de Panóias, no concelho de Ourique. Fez parte de grupos durante cerca de 20 anos. Em seu entender, deveria “existir um certo equilíbrio para que fosse possível juntar os mais novos às pessoas mais velhas e mais experientes, o que nem sempre é fácil. É importante que se percebam e trabalhem juntos para que exista uma continuidade e salvaguarda dos grupos corais”.
“O CANTE É A PRÁTICA MAIS REPRESENTATIVA DO ALENTEJO”
“[A classificação] valeu a pena porque houve um reconhecimento do cante”, diz o antropólogo Paulo Lima, que coordenou a candidatura à Unesco, recordando que antes dessa distinção “o cante era considerado algo chato e de velhos”, tornando-se depois “numa coisa de todos, em que toda a gente gosta e canta”.
Depois desse dia, sublinha, “começaram a existir novos projetos, houve um enquadramento das mulheres que regressaram em força e as escolas começaram a apostar no ensino do cante. O processo de candidatura foi muito vivo e vivido, com o envolvimento de muita gente”.
A classificação da Unesco significou um momento de rutura. “O reconhecimento e até a própria autoestima dos grupos corais aumentaram bastante. A candidatura foi feita para os homens e mulheres que, muito antes disso, já olhavam para o cante como uma prática máxima do ser alentejano. Ao fim de seis anos, podemos dizer que foi um dever cumprido”.
Segundo Paulo Lima, “no exterior, o cante é a prática mais representativa [do Alentejo], mas não podemos esquecer, que convive com outras formas musicais, poéticas e coreográficas que existem noutras partes” da região. “O cante só pode acontecer em grupo. Isso é espantoso e numa altura como esta, em que somos obrigados a estar isolados, deve inspirar o nosso futuro, ou seja, devemos desejar que tudo isto passe, para depois voltarmos a estar em conjunto. É importante, também perceber as estratégias, que podemos implementar para voltar a ouvir as vozes do cante alentejano”, refere.