Diário do Alentejo

“Muitos doentes morrem sozinhos por detrás de uma cortina”

22 de novembro 2020 - 20:15

Capelão há 16 anos no hospital de Beja, o padre José Maria Coelho reconhece que a tarefa “não é fácil”, sobretudo em tempo de pandemia, com as visitas a doentes canceladas. Natural de São Barnabé (Almodôvar), José Maria Coelho diz que os doentes idosos “são quem mais sofre” com um isolamento que, muitas vezes, “não entendem”.

 

Texto Marta Louro

 

Como é ser capelão no hospital de Beja em plena pandemia de covid-19?

Não tem sido tarefa fácil. Estou a cumprir os meus horários no hospital, mas limitado nas visitas e na assistência que dava aos doentes. Com mais tempo no gabinete e na capela, tenho dedicado mais tempo à oração pelos doentes, pelos profissionais de saúde que estão na linha da frente e por aqueles que já partiram devido à covid-19 ou a outras doenças.

 

Há grandes diferenças em relação ao passado?

Antes da pandemia visitava diariamente os doentes no hospital de dia, onde estão os doentes oncológicos a fazer tratamentos de quimioterapia e que são muito sensíveis ao apoio espiritua; o mesmo posso dizer da visita aos vários turnos na hemodiálise, que também é um lugar de sofrimento duro e que desde o começo desta pandemia nunca mais pude visitar. Visitava também, o serviço de obstetrícia para explicar aos pais o significado dos nomes das novas crianças que acabaram de nascer, ao mesmo tempo que se partilha a alegria do seu nascimento. Agora está tudo mais limitado.

 

E mais difícil?

Implica ser criativo, encontrar outras formas de chegar às pessoas e procurar acompanhar os doentes dentro dos limites, fazer pontes e ajudar do melhor modo possível. Muitas vezes telefono aos profissionais (médicos, enfermeiros e outros) a dar-lhes conta de que não os esqueço na minha oração, que estou solidários com eles nesta luta contra a pandemia. 

 

Os contactos diretos estão muitos limitados?

Antes, os doentes vinham normalmente às consultas, nos internamentos tinha a minha visita diária e acompanhava muito de perto as situações mais complicadas. Com a pandemia estou privado de visitar as zonas de internamento, incluindo as urgências. Mas pelos doentes que vou encontrando ou que me procuram vou-me inteirando de alguma ansiedade, até porque muitos têm algum medo de vir ao hospital.

 

Em que é que os doentes com covid-19 diferem dos outros doentes?

Diferem na medida em que o vírus que transportam é contagioso, isto provoca isolamento e ausência de visitas familiares e falta de afetos. Para as pessoas idosas, que são aquelas que em geral são mais afetadas por esta pandemia, devido aos seus limites e capacidade de compreensão, é bastante complicado, porque não entendem as razões deste isolamento e, por isso, sofrem mais.

 

Quais as principais preocupações de quem se encontra internado?

É diferente estar num hospital de passagem para fazer uma operação ou um tratamento de alguns dias de internamento, ou ser um doente a lutar contra um cancro numa fase terminal. Neste último, a ajuda espiritual, o acompanhamento e os afetos familiares são muito importantes. Infelizmente muitos doentes morrem sozinhos por detrás de uma cortina sem um carinho e sem a presença de alguém. Temos de lutar muito para que as pessoas morram acompanhadas.

 

Como é que os doentes reagem à falta de visitas?

Também aqui depende do tipo de doentes e das suas circunstâncias. Como em tudo na vida, existem doentes mais compreensivos e conscientes da situação que estamos a viver. Outros, ou pela idade, ou porque são mais complicados no seu entendimento destas situações, não entendem e revoltam-se. É preciso ajudá-los a compreender que é a situação pandémica que exige estes cuidados e que é necessário fazer estes sacrifícios.

 

O que é que esta missão tem de diferentes das outras?

O nosso trabalho junto dos doentes é um trabalho complementar ao trabalho dos profissionais de saúde e, nesse sentido, é importante sensibilizar os mesmos para a sua importância.

 

Como vê a atual situação pandémica?

Com um misto de preocupação e de esperança. De preocupação, pelas consequências tanto sanitárias como económicas, com as consequências e problemas sociais daí derivados. Por outro lado, tenho esperança que esta pandemia possa ser uma oportunidade de mudança para melhor: a consciência da nossa fragilidade e de que precisamos todos uns dos outros, pois estamos todos no mesmo barco e sozinhos não vamos a lado nenhum. Espero muito sinceramente que a encíclica do Papa Francisco sobre a fraternidade possa ser um grande desafio e uma ajuda para essa mudança.

 

“É NECESSÁRIO REVALORIZAR A ASSISTÊNCIA RELIGIOSA”

O que é mais gratificante nesta sua missão?

Da experiência que posso partilhar como das mais belas é o ajudar alguns doentes em fase terminal a curar feridas que arrastam do passado, descobrir um sentido para a sua experiência dolorosa, a enfrentar-se com sentimentos de culpabilidade e abrir-se confiadamente ao mistério, mas também reconciliarem-se consigo mesmos, com Deus ou com familiares com quem tinham relações cortadas e que eram causa de grande sofrimento, ajudando-os ao encontro e a pedir perdão… ajudar a pessoa sentir-se aceite, despedir-se desta vida com esperança e paz. Esta é uma das experiências mais densas e gratificantes na minha vida de capelão. A partir daqui gostava de salientar que não haverá verdadeira assistência holística sem atender a esta dimensão espiritual, transcendente e religiosa do doente. Daí a necessidade de revalorizar a assistência espiritual e religiosa, não como uma intromissão isolada dos demais cuidados de saúde, mas como um serviço integrado na atenção à totalidade do ser humano enfermo.

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