Diário do Alentejo

"Vinho & vírus”, crónica de Vanessa Schnitzer (export manager)

23 de abril 2020 - 10:00

O meu pensar esbarrou numa coincidência irónica: deixamos de estar aprisionados pela rotina, e passamos a estar aprisionados em casa. A vantagem do atual estado, é que passamos a ter alguma liberdade dentro da nossa nova rotina - podemos optar por ocupar cada dia com um vinho diferente. O vinho nosso de cada dia! Embora estes dias não sejam de festa, porque não, iniciar a semana com um belo e “festivo” “champanhe bairradino” e acabar com um tinto velho no almoço de domingo?

 

Atendendo à ordem mais convencional, começa-se sempre nos mais temperados e termina-se nos mais capitosos, assim evitamos o pecado original da saturação da língua, e as tais sensações obtusas que começam a surgir a partir do terceiro copo. 

E assim, desta forma podemos dar a volta à nossa bendita Lusitânia, e partir à descoberta de um país muito maior do que aquele que imaginávamos, inesgotável, pois são tantos os bons vinhos de inúmeras regiões, que corremos o grande risco de desanimar com a extensão da nossa ignorância.

 

Mas não vale a pena desistir, antes pelo contrário, basta pensar que só graças a este poderoso elixir antivírico podemos correr o país de norte a sul sem nos infetarmos, ao mesmo tempo que nos é dada a oportunidade de deslumbramento a cada novo dia. Através da degustação lenta de cada novo copo, temos a oportunidade de viajar por entre planícies, montanhas e vales, litoral e rios à medida que nos vamos dando conta da riqueza e diversidade geológica e geográfica deste país. Fazemos um apelo aos sentidos para desconstruir a colossal paleta aromática do vinho, que se desdobra nas suas múltiplas variadas sensações e emoções. 

 

E desta forma, e só desta forma regressamos aos importantes sentidos da nossa existência, muitas vezes esquecidos - paladar e olfato. Damos finalmente conta, que andámos todo este tempo limitados e perdidos, apenas com a visão e audição, à medida que as nossas vidas iam sendo consumidas no relâmpago de um fósforo. De repente, a terrível realidade nos assalta: a vida que levámos até agora que sentido tinha? 

 

Um famoso primatologista da Universidade de Harvard, Richard Wrangham, defende que foi o aparecimento da cozinha que permitiu aos nossos antepassados triplicar as dimensões do cérebro: «abrindo estrada à expansão do cérebro humano, a cozinha (e por essa via, o paladar) tornou possíveis resultados cerebrais como a pintura nas cavernas, a composição de grandes sinfonias ou a invenção da Internet. O próprio Eça de Queiroz nos ensinou que: “a maneira como se cozinha marca o índice de civilização de um povo”. 

 

E, no fim aproveito para vos desafiar: em cada novo vinho, experimentem olhar tudo pela primeira vez, e reconhecer em cada novo gole a porta de entrada para o bem-estar. E, no fim da garrafa, recuperamos a sensibilidade em relação à vida e brindamos à sua desconcertante simplicidade e beleza.

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