Diário do Alentejo

Crónica de Jorge Martins: Quantos são?

20 de março 2023 - 09:00
Ilustração | Susa Monteiro/ ArquivoIlustração | Susa Monteiro/ Arquivo

“O meu nome é saudade. Nasci quando alguém partiu sem avisar.”*

- Tens irmãos?

- Tenho.

- Ah. Não sabia. Quantos?

(pausa técnica para reflexão)

 

Há questões que nos são colocadas que são de resposta imediata. Óbvia. Sem espinhas, se quisermos.

 

Em bom rigor, esta é uma questão que, para a maioria das pessoas (ou pelo menos assim espero), não tem ciência. Admitindo que dependa da faixa etária dos interlocutores, naquela em que me insiro diria que assim será.

 

No entanto, de algum tempo a esta parte, aquilo que seria uma questão de resposta básica, para quem pergunta, passou a um dilema para o qual eu ainda não encontrei resposta. Pelo menos imediata. Pelo menos sólida. Pelo menos coerente.

 

É disso que vos falo hoje: da perda.

 

Passadas quatro décadas (e uns trocos) de vida, tenho cada vez mais certeza de que nesta as certezas são muito poucas.

 

Mas a jornada tem destas coisas.

E também a perda nos ensina. Podíamos ir pelo cliché de que aquilo que não nos mata torna-nos mais fortes. Mas quando “aquilo” é a perda, que não nos matou a nós mas, garantidamente, a alguém, a coisa já muda de figura. Não ficamos mais fortes coisa nenhuma. Se os primeiros momentos são de anestesia geral e os que se seguem são de tristeza profunda, quando finalmente aquele camião que nos atropela termina a sua missão e sai de cima de nós, segue-se uma apatia que não sei, ainda hoje, se poderá confundir-se com processo de aceitação, rendição ou, simplesmente, nada... Vazio...

 

Aquilo que esta passagem nos dá, aquilo a que nos permitimos, poderá ter em nós um impacto muito menor quando comparado com aquilo que vida decide tirar-nos. A qualquer instante. Sem pré-aviso. Sem preparação. Sem volta.

Se isto pode, por um lado, ser motivo de reflexão para que possamos aproveitar e valorizar o que temos, o fruto do que fazemos nesta jornada, por outro acrescenta o desalento de sabermos que tudo o que nos dá, a vida ameaça, permanentemente, retirar-nos. Pontos de vista, dirão uns. Copo meio cheio, outros. Carpe Diem, os mais eruditos. Tretas, digo-vos eu.

 

O que cada um sente no momento da perda não se teoriza para livro. A forma de lidar não se aprende. O impacto não se mede. As contraindicações não vêm nessa bula. Mas a jornada tem destas coisas. E também a perda nos ensina. Podíamos ir pelo cliché de que aquilo que não nos mata torna-nos mais fortes. Mas quando “aquilo” é a perda, que não nos matou a nós mas, garantidamente, a alguém, a coisa já muda de figura.

 

Não ficamos mais fortes coisa nenhuma. Se os primeiros momentos são de anestesia geral e os que se seguem são de tristeza profunda, quando finalmente aquele camião que nos atropela termina a sua missão e sai de cima de nós, segue-se uma apatia que não sei, ainda hoje, se poderá confundir-se com processo de aceitação, rendição ou, simplesmente, nada... Vazio...

 

É nesse vazio que fico quando confrontado com a questão inicial. Ouvi, numa outra cerimónia associada à perda, pouco tempo depois, que o amor não morre mas, sim, aumenta e ganha companhia: a saudade.

 

Teorias... Pontos de vista, uma vez mais.

A verdade, nua, crua e dura, é que aquela pessoa já não está. Porém, perceber qual a resposta certa para esta pergunta de 100 mil euros, se é que ela existe, é um processo.

 

Mudar o tempo verbal, colocar a resposta no passado e assumir que esse passado é o correto para uma resposta no presente, garantir o conforto nessa assunção, tirar o peso da dúvida, traz todo um outro episódio, consoante seja a nossa escolha de detalhar, pois daí advém a certeza (das poucas, lá está!), de que se seguirão mais questões de não menos difícil resposta.

 

Ignorar o cerne da questão que a torna tão ingrata é também um caminho. Garantir uma resposta presente para o momento, também ele, atual, mostra coerência com os factos. Mas também poderá desvendar uma frieza que se confunde com superação. Qual a justiça deste tempo verbal?

 

Dirão: mas é possível colocar a resposta no presente contemplando aquela pessoa que já não o está. Sim, é, claro. Mas quão esquizofrénica poderá ser essa resposta? Quanto mexe ela connosco? Tratamos de saciar a curiosidade do próximo, que fica com meia história, e aumentamos a nossa dúvida interior… Este é o resultado desta opção.

 

Sigo, neste caso, com a vantagem de poder continuar a responder à primeira parte com um redondo sim e a esperança de que encontrarei uma saída airosa, igualmente esférica, para a segunda parte...

 

*excerto da música “O meu nome é saudade”, de Luís Trigacheiro

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