Diário do Alentejo

“À Portuguesa: Receitas em Livros Estrangeiros até 1900”

20 de agosto 2021 - 10:05

Da autoria de Virgílio Nogueiro Gomes, cujas crónicas de gastronomia são regularmente publicadas no “DA”, aí está “À Portuguesa: Receitas em Livros Estrangeiros até 1900”. Já à venda ‘online’ em diversas livrarias (às quais a edição em papel chegará na próxima quarta-feira, dia 18 de agosto), o livro resulta de um trabalho de investigação que durou seis anos e apresenta 31 livros e 118 receitas, traduzidas de quatro línguas. O lançamento será no próximo dia 15 de setembro, pelas 18:00 horas, no Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa.

 

“A receita ‘à Portuguesa’ antecede no tempo a construção mental e material conducente ao conceito de cozinha portuguesa. A identidade nacional não é estática. Talvez sejamos obrigados a compreender que as receitas ‘à Portuguesa’ participam do nosso conceito amplo de identidade, mas não da nossa herança”, refere Inês de Ornellas e Castro, professora do Departamento de Estudos Portuguesas da Universidade Nova de Lisboa, e autora do prefácio, do qual aqui se publicam alguns excertos.

 

 “PREFACIANDO UM LIVRO CUJA ESCRITA SÁPIDA ACOMPANHEI”

 

Nem sempre temos a oportunidade de acompanhar um projeto, de vê-lo germinar em textos avulsos de crónicas até tomar um rumo definitivo imposto pela dinâmica do prazer da descoberta. No trabalho ora apresentado por Virgílio Nogueiro Gomes, um estimado Amigo, a pesquisa cingida ao texto impresso na Europa deixou de fora, por motivos programáticos, o registo manuscrito. Leu e estudou mais do que as trinta e uma obras usadas para a presente publicação. Foi um percurso de anos. Um livro conduziu a outro e, mercê das interrogações, multiplicaram-se as conversas. Com efeito, estas receitas “à Portuguesa” devolvem-nos mais perguntas do que respostas. Correspondem à parcela da nossa identidade forjada de fora para dentro. Mesmo que nem sempre disso tenhamos consciência, também somos aquilo que o olhar do Outro projeta sobre nós.

 

A identidade lusa ilustrada por estas 118 receitas decorre das representações feitas por cozinheiros estrangeiros. Compreende trinta e sete receitas de salgados e, como seria de esperar para um país associado à epopeia da cana-de-açúcar, oitenta pertencentes ao domínio da doçaria e oriundas da arte médica - não esqueçamos que a compota começa por ser um medicamento -, embora se deva ter em conta que grande parte delas foi concebida num período cujo enquadramento cognitivo é anterior à oposição entre doce e salgado. 

 

Sem pretender desvendar em demasia, convém fazer uma advertência ao leitor: neste livro encontramos, sobretudo, receitas que reproduzem aquilo que o(s) Outro(s) percecionaram ser, de algum modo, identificável com Portugal ao longo de trezentos anos. No domínio da escrita culinária poder-se-ia pensar em categorias paradigmáticas tais como técnicas, produtos e, em menor escala, utensílios - existem pratos denominados segundo o recipiente em que são cozinhados, tal como a nossa cataplana. Num conspecto cronológico que começa em 1604, com - e bem a propósito - uma “Ouverture de cuisine”, o título de Lancelot de Casteau, e termina em 1900, os autores, todos do sexo masculino e profissionais, exceto Sir Digby (1669), evidenciam um conhecimento bastante distanciado do que seria a cozinha portuguesa, ou, com maior propriedade, da que se fazia em Portugal. Não é de estranhar. A comida sempre ocupou um amplo espaço na nossa imaginação; a fantasia supre lacunas, mas por vezes ultrapassa bastante a verosimilhança. Acresce que, até ao século XVIII, pouca diferença existe na prática culinária das mesas das elites europeias; a distinção decorre da especificidade geográfica, melhor dizendo do uso de produtos oriundos ou aclimatados em determinado território. Alguns tão bem aclimatados que, no imaginário dos países em torno do Mediterrâneo, convertem-se num ‘ex libris’ de uma região ou país, parecendo ser irrelevante o continente de onde determinada cultura seja originária. É o caso da célebre laranja doce e, a partir de Oitocentos, do tomate - aqui testemunhado pela primeira vez num “Lúcio com Molho à Portuguesa” de Viard em 1806-, ambos associados a Portugal.

 

A maior parte das obras foi escrita muito antes de existir o conceito de pratos tradicionais e nacionais e, não raro, verificamos nas cozinhas aristocráticas de diversas partes da Europa a prevalência de um mesmo ‘modus faciendi’ ou até uma denominação transnacional, ainda que em tradução, de um prato. Haverá melhor exemplo do que o celebrado “manjar branco”? A existência de uma gramática comum não impediu que o gosto pelo exótico prosseguisse o seu caminho. (…)

 

Como ler estas receitas “à Portuguesa”? Para começar temos de contextualizar o significado de autenticidade. Se pretendermos ler enquanto Portugueses e tentarmos procurar no receituário nacional onde existe ou teria outrora existido determinada preparação culinária, a deceção afigura-se grande. Na verdade, ao persistirmos nesse intuito, concluiremos muito provavelmente que grande parte das receitas nada tem de especificamente português, exceto, afirmarão os mais perspicazes, certos ingredientes. Poucas denotam um conhecimento do que seria uma forma de preparar portuguesa. Assim sendo, a autenticidade destas receitas não reside no conceito de tradição, mas antes no de criatividade. Impõe-se aqui uma distinção entre o que é feito em Portugal e aquilo que é apresentado “à Portuguesa”. As receitas “à” ou “à moda de” testemunham uma curiosa afirmação, quer de alteridade quer de protagonismo (algo como eu conheço como se faz no local X), e não datam, como muitos supõem, da época moderna. Podemos recuar ao século I a. C. na Antiga Roma, quando esta se afirmava como espaço de hegemonia política e fazia confluir à mesa da Urbe produtos e técnicas reveladoras de uma cozinha cosmopolita.

 

Se observarmos os locais de edição compreendemos que os tratados de cozinha aqui em apreço nasceram em locais de referência na história da alimentação, onde o poder e a cultura não necessitavam de aprovação do exterior. No caso destas receitas “à Portuguesa” não está subjacente qualquer subserviência face ao então reino de Portugal, mas - regozijemo-nos - os autores das obras deduzem que o interlocutor sabe onde está situado este país. Suficientemente europeu para merecer ser citado pela Alta Cozinha, suficientemente periférico para sobre ele se poder efabular.

 

Apresentar receitas “à Portuguesa” em impressos desde 1604, sem necessidade de explicações de índole geográfica, significa, pois, que as representações da nossa cozinha estão alicerçadas numa identificação sem equívocos. Não exportámos cozinheiros nem léxico culinário de monta que surja como estrangeirismo noutras línguas. Este livro vai, todavia, demonstrar que existe outro tipo de pegadas onde menos se esperaria. Aconselho o leitor a deliciar-se com a “marmelade” por exemplo. Afinal, temos as fronteiras delimitadas mais antigas da Europa, as princesas dadas em casamento aos monarcas de outros países não esqueceram a cozinha de origem, fomos grandes comerciantes e demos a conhecer novos produtos trazidos do novo mundo. (…)

 

Virgílio Nogueiro Gomes deixa-nos um trabalho de referência. Abre caminhos para uma interpretação literal, i.e., cozinhar e provar as receitas selecionadas e traduzidas, e, numa época nostalgicamente vocacionada para património imaterial, conduz a uma reflexão sobre autenticidade e perceção de identidade culinária. Neste conjunto estão patentes três centúrias; será proveitoso para o leitor verificar até que ponto se manteve ou evoluiu a perceção do Outro sobre a nossa mesa (…)”.

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