Diário do Alentejo

“Procuro humildemente escrever a humanidade. Conforme a vou sentindo”

19 de agosto 2021 - 15:20

Ana Paula Figueira nasceu em Beja, no antigo Hospital da Misericórdia, em julho de 1965. Sendo filha única, conta que na casa dos avós e, posteriormente, na dos pais, cruzaram-se, durante muitos anos, várias crianças e adolescentes, situação que lhe marcou, de forma indelével, a sua formação. O percurso académico começou em Beja, mas o 12.º ano já foi feito em Lisboa, no Liceu Passos Manuel. Em 1986 licenciou-se no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas – Universidade Técnica de Lisboa. Em 1997 concluiu o mestrado e, em 2007, o doutoramento na Universidade de Évora.

 

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Para além de trajeto académico e profissional vasto, Ana Paula Figueira é escritora de créditos firmados, contando no seu currículo literário com cerca de duas dezenas de livros editados, a maioria catalogados como infantis, mas de interesse para todas as idades. As outras obras são coletâneas de crónicas de opinião e livros técnicos.

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras?

 

Sempre fui uma pessoa inquieta, apaixonada por estórias e fascinada pela leitura. Lia e ainda continuo a ler, especialmente os autores clássicos, portugueses e estrangeiros. Nos últimos anos tenho dado particular relevância à poesia. Talvez por me sentir com outra – mais e melhor – preparação para a compreender. A minha lista de referências é longa e, por certo, muito parecida à de outras pessoas que partilham este interesse. Mas, para não me furtar à citação de nomes, e circunscrevendo-me apenas a portugueses, salientaria Alexandre O’Neill, como uma verdadeira inspiração para as crónicas. Depois, de entre os poetas vivos que admiro, saliento o médico Jorge Sousa Braga.

 

Pergunto-lhe sobre o porquê da escrita na sua vida?

 

Excluindo a produção de livros técnicos que tem a ver com necessidades de carácter académico, quando escrevo faço-o em particular para mim. Funciona como uma catarse. Procuro encontrar uma linguagem que permita usar a minha experiência e transformar isso em algo que “incomode” o leitor. Claro que a imaginação tem sempre um papel determinante nesse processo e, por isso, mesmo quando transcrevo a vida, procuro transcendê-la. Quando me perguntam se os meus livros são autobiográficos, respondo que, se considerarmos que recorro a elementos que conheço para conferir verosimilhança à escrita, na composição de personagens e na ilustração de situações, a resposta será sim. Mas acredito que isso tenha pouca ou nenhuma importância para o leitor. Afinal, isso faz parte do método e apenas uma minoria poderá ter interesse em conhecê-lo. Envolvido numa criação estética, julgo que o leitor valoriza muito mais imaginar enquanto lê. Até onde está a Ana Paula e a partir de que momento deixa de estar? Esse é, para mim, o desafio: “jogar” com a incerteza, tal como Hitchcock preconizava: ‘play them like an organ’!

 

Dos vários géneros de escrita, algum que seja o de eleição? 

 

Sou professora, de profissão, o que me permite dar ao “luxo” de escrever sem qualquer tipo de pressão. Sobre o que quero, quando quero e como quero. Fazer experiências. Talvez por isso não sinto vontade de concorrer a prémios, ou não esteja “talhada” para isso. Considero que a sorte dá muito trabalho, e implica encontros de preparação e de oportunidade. Posso dizer que tenho tido a “sorte” de ter quem editasse e distribuísse a maioria dos meus livros. Assim como, desde 2011, tenho espaço em órgãos de comunicação social regional, para crónicas de opinião.

 

Quais as suas fontes de inspiração?

 

Não tenho fontes de inspiração, em particular. Diria antes que me considero uma humanista e, por isso, procuro humildemente escrever a humanidade. Conforme a vou sentindo. Por isso, em termos criativos, fujo a todo o momento de uma autofagia que receio que se instale. Como? Saindo da minha zona de conforto, procurando novos desafios, desaprendendo constantemente.

 

De todos os trabalhos desenvolvidos, alguns que tenham sido mais marcantes?

 

As “Conversas Tertulianas” e o “em.cantos” em 2009 e 2010, pelo seu ecletismo. Foram experiências valiosas para muito do que fiz a seguir.

 

Quer destacar alguns momentos especiais vividos ao longo do percurso de escritora?

 

Os meus livros têm-me dado tanto, tanto. Recordo momentos de pesquisa para os livros sobre certos problemas vividos e falados pelas crianças: a violência doméstica, o luto, a doença mental e o divórcio. Os livros que escrevi são de todas essas crianças com as quais conversei, vítimas desses problemas, e que tanto me ensinaram.

 

Qual a sua opinião sobre o atual universo literário em Portugal?

 

Julgo que também neste setor deviam existir políticas culturais mais claras e transparentes que facilitassem, por um lado, a descoberta de valores e, por outro, que contribuíssem para aumentar e para tornar mais exigentes os hábitos de leitura dos portugueses. Sinto que impera o “desenrascanço”: numa primeira aproximação a este mercado, os editores – agora grandes grupos editoriais - querem fazer dinheiro e optam por editar autores mediáticos que lhes dão mais garantias de vendas; cada vez há mais pessoas a escrever e a publicar, mesmo que paguem para isso, existindo editoras que funcionam nessa base. Ou seja, escreve-se muito e publica-se muito… material com pouca qualidade. Recordo ter ido, por convite, à apresentação de um livro em que o autor – que se intitulava escritor –, a beirar os 30 anos, ter assumido que teria lido quatro ou cinco livros durante toda a sua vida. Numa segunda aproximação, percebe-se que, para além disto e talvez como uma resposta a esta “roda livre”, existem os grupos “fechados”, constituídos por aqueles que estão assumidamente fora deste ‘mainstream’: escrevem uns para os outros, dão prémios uns aos outros, frequentam os programas de televisão uns dos outros… Admiro, por isso, a resiliência de quem não está em nenhum dos lados desta “barricada” e, ainda assim, procura fazer um caminho sério, recolhendo a opinião crítica de quem sabe que a dá de forma desapegada, procurando seguir em frente, na esperança de deparar com momentos de “sorte” que possam fazer a diferença. E no final, ter oportunidade de ser lido.

 

E o acordo ortográfico?

 

Escrevo de acordo com o anterior acordo ortográfico. Considero que o novo acordo é uma fonte de aberrações e incoerências, algumas delas até bastante insólitas. Contudo, em situações pontuais, permito que alterem os meus textos.

 

Como tem vivido este período de ‘stand by’ no mundo?

 

A incerteza que marca este tempo provoca-me uma grande apreensão e aumenta o meu ceticismo. Nada disto rima com liberdade, a tão desejada. Por isso, estimular a criação como meio para chegar à liberdade, é ainda mais importante nesta altura.

 

Que ambições “moram” na escritora Ana Paula Figueira?

 

Continuo a ter “em mim todos os sonhos do mundo”. Acredito que as pessoas não estão no mundo, por acaso. Têm missões. Infelizmente, nem todos vivem a epifania da descoberta. Eu tenho vindo a descobrir a minha, e tenho procurado dar-lhe cumprimento. Até quando? Não sei!

 

O que está na “manga” a curto e médio prazo?

 

Neste momento estou envolvida na criação de um CD de música popular alentejana. Intitula-se Âmbria, e assinei os seus 10 temas. A composição musical de oito desses temas teve como autor o José Emídio, e dois deles são do João Frade. Este trabalho inclui, para além do José Emídio (voz e viola campaniça) e João Frade (acordeão), o Adriano Alves (baixo), o Bernardo Emídio (voz), o Rúben Lameira (voz) e o Tiago Oliveira (guitarra). Conta ainda com a participação especial da Ana Laíns e do Grupo Coral da Casa do Povo de Vila Nova de Milfontes. Ambicionamos fazer tradição. Por isso, cantamos a tradição, mas não o cancioneiro. E temos 10 pessoas que se destacam em vários setores, todos ligados ao desenvolvimento local e regional, que apadrinham os temas. Que melhor ferramenta de coesão do território poderíamos fazer? Tal como escrevi para um dos temas: “Este é o Alentejo que eu amo/Este é o Alentejo que eu canto”.

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