Diário do Alentejo

“Sou adverso às circulações à volta do meu umbigo”

06 de agosto 2021 - 17:00

Texto Luís Miguel Ricardo

 

“Sou um escritor tardio que só começou a escrever a sério a partir dos 60 anos. Porém, sempre fui um leitor assíduo e por isso posso dizer que levei uns bons 50 anos a aprender com os melhores mestres”. É assim que se define o escritor António José da Costa Neves, conhecido no universo literário por António da Costa Neves ou por E. S. Tagino, o pseudónimo com que assina parte das suas obras.

 

António da Costa Neves tem 76 anos e é natural de Grândola, vila onde permaneceu até aos 18 anos, altura em que partiu à descoberta do mundo. Depois de um percurso de vida preenchido e de um trajeto profissional diversificado, percorrido em diversas geografias e contextos (no fisco, na banca, na saúde, na atividade empresarial, nacional e multinacional, na economia social e na gestão de projetos), atracou-se às letras e às palavras para, através delas, levar emoções aos leitores.

 

As raízes alentejanas e as vivências adquiridas ao longo da vida são os pilares da sua obra literária. Uma obra vasta, repleta de distinções em concursos literários, e na qual se destacam os títulos: “Mataram o Chefe de Posto”; “Nem por Sonhos”; “Arquivo Morto”; “Mea Culpa”; “Abaixo de Cão”; “O Amor nos Anos de Chumbo”; “O Pequeno Incendiário”; “Adamastor”; “O Implacável Cerco de Almada”; “Trinta Sonetos Triviais”; “Um Certo Incerto Alentejo”; “Sangue de Portugal”; “Contos da Serra e da Planície”. E na forja já estão mais duas: “Alma Alentejana e Outras Histórias”, em processo de edição, e “Sem Pavor, o Cão do Giraldo”, com lançamento marcado para janeiro de 2022.

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras?

 

Desde o liceu, quando comecei a escrevinhar versos, que fui publicando em jornais e revistas. O primeiro romance, contudo, só o escrevi depois dos 60 anos, quando me reformei. A literatura foi o ‘hobby’ a que me agarrei quando o vazio da inatividade começou a esmagar o meu quotidiano. Em boa hora tive algum sucesso imediato, e isso fez-me continuar até hoje.

 

Algum registo literário de eleição?

 

Tudo depende do momento, às vezes de uma ideia ou de uma simples frase. Muitas vezes nem isso. Gosto de todos os géneros e gosto de arriscar novos percursos. Acabei de escrever uma peça de teatro, coisa que nunca tinha feito. Por causa do meu editor, que me está sempre a incentivar, tenho escrito alguns romances históricos. O último chama-se “Sem Pavor, o cão do Giraldo”, uma história típica de fronteira, quando a fronteira se situava nessa extrema dura que flutuava entre Santarém e Beja, Évora e Alcácer do Sal.

 

Quais as motivações para escrever?

 

Como nunca sei o que um livro vai dar, escrevo-o da mesma forma que um polícia faz o seu trabalho. Ponho-me atrás dos personagens e vou espreitando o que eles fazem. Alguns são bandidos, quase sempre bons malandros, outros são vítimas, invariavelmente pouco inocentes. Depois, como um bom juiz, castigo uns e premeio outros, mas nunca pelas melhores razões. Li centenas de livros policiais e acho que são uma boa escola. Sou adverso às circulações à volta do meu umbigo. Do que gosto mesmo é de contar histórias.

 

O Alentejo é fonte de inspiração?

 

O Alentejo é uma permanente fonte de inspiração. O meu último romance, para o qual espero mais um prémio literário, é um regresso ao Alentejo do primeiro quartel do século XX e uma desmistificação completa de alguns postulados assumidos como incontestáveis por uma certa elite literária e política. Não faltam temas alentejanos nem personagens únicas e pitorescas para descobrir.

 

Qual a história que está por detrás do pseudónimo E.S. Tagino?

 

E.S. Tagino quer dizer que eu sou de entre o Tejo e o Sado e foi o pseudónimo com que apresentei o meu primeiro romance, “Mataram o Chefe de Posto”, ao concurso literário que acabou por ganhar. O meu editor gostou da ressonância latino-americana e sugeriu que ficasse. Mas nos últimos anos tenho assinado muita coisa com o meu nome próprio, nomeadamente romances históricos e poesia, que sempre assinei com António da Costa Neves.

 

Já conseguiu 15 prémios literários. Qual o “segredo” para o sucesso?

 

Só há um segredo, é gostar do que se faz e tentar fazer sempre o melhor. No meu caso, escrever, escrever, apagar, apagar, e voltar a escrever. Mestre Aquilino dizia que todo o escritor tinha de ter orelhinha. Quando nos soa bem é sinal de que a coisa está no ponto. A narrativa – e o romance talvez seja o apogeu da narrativa – é herdeira da velha leitura em voz alta, quando os pobres analfabetos das nossas aldeias se reuniam para ouvir contar histórias. Na tasca da Dulcineia, o taberneiro, a determinada altura, conta a D. Quixote que era vulgar, na época das ceifas, reunirem-se, ali, 40 e mais camponeses para ouvir ler histórias.

 

Que impacto tiveram as distinções literárias na consolidação da carreira de autor?

 

Tiveram um papel fundamental, porque sem elas não teria escrito nem publicado tanto. Os prémios são uma dádiva, principalmente para os escritores de província e para todos aqueles que não frequentam os círculos de culto, o Chiado ou os Jardins da Gulbenkian.

 

Dos trabalhos desenvolvidos ao longo da carreira, alguns que sejam mais marcantes?

 

É sempre o último. Mas, olhando para trás, penso que “Adamastor” e “Sangue de Portugal” estiveram lá próximos. São os dois romances mais longos e nos quais investi mais tempo… conseguiram responder integralmente ao que me propunha fazer: contar a passagem de Camões pela Ilha de Moçambique e, em simultâneo, a saga dos portugueses pelo Oriente; e desenhar um fresco sobre a Guerra Civil que conseguisse clarificar todos os aspetos políticos, sociais, económicos e administrativos que presidiram à instituição do regime parlamentar em Portugal.

 

Algumas histórias ou momentos curiosos vividos ao longo do percurso de escritor?

 

Um dos mais significativos aconteceu com o professor Alexandre Castanheira, perseguido e exilado político, fundador e professor do Instituto Piaget, já falecido, que tendo lido nos anos 80, num jornal, um poema meu, ficou de tal modo impressionado que o recortou e guardou no seu arquivo. Passados 30 anos, num sarau em que eu disse esse mesmo poema, ele irrompeu da assistência para me abraçar e contar esta pequena história de comunhão intensa entre dois perfeitos desconhecidos que a literatura irmanara.

 

Qual a sua opinião sobre o universo literário em Portugal? 

 

Acho que há demasiada gente apaixonada por si própria e uma certa crítica literária que alimenta o fenómeno. Eu conto histórias e importa-me pouco as elucubrações psicológicas de egocêntricos que se julgam o centro do mundo. Quanto às editoras, haverá de tudo. A vida não está fácil, mormente na área da cultura e da edição. No meu caso, o período da ‘troika’ foi catastrófico. A minha editora quase paralisou.

 

E sobre o acordo ortográfico?

 

Acho que foi um erro crasso e um facilitismo para os preguiçosos. Já ninguém sabe latim e por isso perdeu-se o sentido do étimo. A maior parte dos governantes e dos deputados é analfabeta funcional e o ouro do Brasil continua a luzir como no tempo do senhor D. João V. Penso, no entanto, que lhes saiu o tiro pela culatra porque nem abrasileirando a grafia as portas do Eldorado passaram a estar mais abertas. Enquanto escritor, tive de me adaptar, até porque os novos leitores já vêm formatados para a nova escrita.

 

O que está na “manga” a curto e médio prazo?

 

Um novo livro de contos em que tentarei refletir sobre o tempo presente; e rever, rever, rever e tornar a rever o meu novo romance sobre a circunstância de se ser alentejano numa república sem rumo, quando já se vislumbrava o advento de um ditador.

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