Diário do Alentejo

Crónica de João Mário Caldeira: “O Guadiana”

22 de julho 2021 - 10:15

O Guadiana foi a aorta do Alentejo, o vaso maior. Transportava no seu curso, como sangue, a magia da água, bem precioso em terra precisada.

 

Desde que entrava em Portugal, vindo de Espanha, até lançar-se no Pulo do Lobo, o Guadiana parecia não correr como se quisesse ficar para sempre no Alentejo.

 

As populações das suas margens limitavam-se a vê-lo passar aguardando solução para sumiço de tanta água. Sem lhe poderem valer só lhe restava, de coração partido, dedicar-lhe a moda que se canta em Serpa: rio Guadiana querido, saudades do meu olhar, quem me dera ir contigo, nas ondas que vão pró mar. 

 

Entretanto ele lá ia, ronceiro e mole, cumprindo a sina de rio cansado de se perder.

 

Com a descrença habitual, os alentejanos sonharam com uma barreira que o conservasse junto deles. Para sempre. Um contraforte levantado à medida da sua fortaleza. Desde que o sonharam até lhe fazerem a vontade decorreu uma vida!  Não se importaram. Aprenderam a esperar com as desilusões. Ao fim de estudos e mais estudos, sempre para empatar, foi escolhido o local da barragem. Os naturais continuaram a aguardar. Entretanto, um mais decidido, tirou-se de seus cuidados, pegou num pincel com cal e escreveu no sítio aprazado a frase que correu mundo: Construam-me, porra!...

 

Os técnicos, a mandado dos políticos, decidiram-se e levantaram o grande paredão de Alqueva. Só que a maioria da população continuou tão surpresa quanto antes:

 

- Que irão fazer depois de nos aprisionarem o rio?

 

A jusante da grande barreira em cimento armado, as pessoas alvoroçaram-se, temendo perdê-lo para sempre. Para as animar os especialistas abriram uma gateira na parede gigantesca mas já não deixaram passar o Guadiana inteiro, só uma coisa a que chamaram caudal ecológico que pelos vistos também corre. De grande rio do Sul, o Guadiana, passou a uma designação apadrinhada por engenheiros.

 

As pessoas não compreenderam logo, mas acalmaram-se! Mesmo domesticado, os mais velhos continuaram a chamar-lhe” “a Gudiana”, no feminino e com a mesma delicadeza e amor.

 

O que são os tempos! Ainda não há muito, às portas de Serpa o grande rio moía trigo fazendo girar mós de azenhas tão velhas como os homens. Hoje passa envergonhado deixando correr as mágoas da sua inutilidade pelas carcaças esventradas desses moinhos de corrente! Nem o caneiro armado à saída do açude pode já prender os peixes que ajudavam a subsistência do moleiro!

 

Mas, apesar de crismado por gente que mal o conhece, persiste em deslizar de mansinho nos arredores de Serpa, dando de beber a uma vasta flora silvestre: silvas, saíssos, loendros e tamujeiras, ávidos de água, freixos, faias, vimeiros e choupos, à procura da humidade que resume nas suas margens, o junco, o buínho e a junça nos recantos mais humosos da corrente. 

 

Igualmente um grande número de bichos continua, de uma forma ou de outra, a dele depender. Libélulas, sapos, rãs, cobras de água e salamandras, ratos de água e lontras, patos, garças-reais e guarda-rios não se inibem de o acompanhar no seu recolhido percurso.

 

Mau grado alguma poluição que se concentra nas suas águas, a fauna piscícola permanece. Daí haver gente que munida de tarrafas e tresmalhos dela se aproveita pescando em pequenos barcos sem quilha. Nas malhas desses enganos se enredam barbos, pardelhas, bogas e bordalos, proporcionando o caldo de peixe a que os naturais lambem os beiços saboreando-o primavera adiantada nas margens do rio sob a sombra da azinheira. Os peixes são escamados meio vivos, assim que despejados na margem. O corpo pacientemente retalhado em cortes transversais para não se dar pelas espinhas. Depois de amanhados, arrepiam-nos levemente com sal e deixam-nos repousar, resguardados das moscas que são mais bastas que balanco em seara logo que aperta o calor. Num lume de rama de azinho aceso entre três pedras, colocam o tacho de ferro de duas asas onde previamente migaram alho, cebola, tomate, hortelã da ribeira e poejos, pimenta preta moída, uma pitada de colorau, um punhadinho de sal grosso e azeite quanto baste. Se o têm à mão juntam aos temperos o cebolinho do rio, condimento igualmente relevante para alguns. É tempo de espertar no azeite as ervas, os legumes e as especiarias, acrescentando depois água que abonde e deixando o conteúdo ferver em lume brando. A seu tempo lançam-lhe para dentro o produto retalhado retirando-o sem demora e tornando a polvilhá-lo com sal para não amolecer. É com ele, o rei da festa, que acompanham as sopas de pão embebidas pelo caldo. Entre os comensais, a expectativa cresce e a sensibilidade aumenta com o ar do campo. Morrem-lhes os olhos no peixe rescendente enquanto salivam o tempo. Bem podem os pássaros cantar!...

 

O grande obstáculo do Pulo do Lobo, impede que peixes mais nobres apareçam a montante. A lampreia e a saboga ainda se aventuraram até Serpa aquando das grandes cheias de meados do século passado, aproveitando a subida do caudal do rio. Há uma eternidade que não visitam as águas próximas da velha urbe nem que fosse para matar saudades aos moradores, mas o futuro já não consente. O Guadiana deixou de ser senhor de si, correndo a mandado de computador.

 

Engolindo em seco, há cada vez mais gente a concordar com a disciplina imposta ao rio mesmo aqueles que tiveram que buscar nova Luz numa aldeia fabricada fugindo ao charco imenso em que o rio se transformou acima do paredão.

 

Os tempos não estão para brincadeiras e as saudades, pouco a pouco, vão perdendo a validade.

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