Diário do Alentejo

“A vivência alentejana dá-me um mundo próprio”

30 de junho 2021 - 16:15

Texto Luís Miguel Ricardo

 

“Nasci em setembro de 1974 e, por isso, costumo brincar dizendo que sei bem onde estava durante o 25 de Abril”. José Luís Peixoto nasceu em Galveias, entre Ponte de Sor e Avis. E foi em Galveias que viveu a infância e a adolescência, antes de ir estudar para a Universidade Nova de Lisboa, onde se licenciou em Línguas e Literaturas Modernas, na variante de Inglês e Alemão. Seguiram-se quatro anos como professor do ensino secundário na região de Coimbra e, depois, em Cabo Verde.

 

O primeiro livro, intitulado “Morreste-me”, foi publicado no ano 2000, em edição de autor. Ainda nesse ano, saiu o romance “Nenhum Olhar”, que tem o Alentejo como tema e cenário, e ao qual, um ano depois, foi atribuído o Prémio Literário José Saramago. Um prémio que revolucionou a vida literária de José Luís Peixoto, possibilitando-lhe que os seus livros começassem a ser publicados em múltiplos países e que se pudesse dedicar à escrita a tempo inteiro. Desde então, e ao longo destes 20 anos de percurso, a obra de José Luís Peixoto tem crescido bastante, tendo recebido várias distinções, de que são exemplos o Prémio Libro d’Europa, em 2012, ou o Prémio Oceanos de Literatura, em 2016.

 

Deste, já longo, percurso literário, que trabalhos e projetos há a destacar?

 

Desde o meu primeiro livro, tenho publicado títulos dos mais diversos géneros. Para além dos romances, tenho também livros de poesia, obras dedicadas à juventude e peças de teatro, por exemplo. Mas também me tenho dedicado a vários projetos que cruzam artes e que envolvem outros artistas. Um projeto que foi muito falado quando saiu, por exemplo, foi o que realizei com a banda de música pesada Moonspell. Eles fizeram um disco relacionado com um livro meu que, por sua vez, também era relacionado com esse disco. Esses trabalhos foram feitos ao mesmo tempo e ambos se chamam Antídoto. Para além disso, tenho trabalhado com artistas plásticos, fotógrafos, gente de muitas áreas. Ainda no âmbito da música, tenho escrito letras para muita gente, destaco os nomes de Jorge Palma, Joana Amendoeira, Mísia, Quinta do Bill, Da Weasel, entre muitos outros. Em 2009, com Carlos Martins, participei num projeto bastante inovador que associou o jazz ao cante alentejano e que foi apresentado na Praça do Giraldo, em Évora.

 

Algum registo de escrita que seja o de eleição?

 

Todos os géneros têm os seus desafios. Objetivamente, nenhum é superior a outro. Também por isso, me sinto tentado a desenvolver trabalho em muitos géneros. No entanto, sinto que, hoje em dia, aquele que mais me desafia é o romance. Por natureza, trata-se sempre de um trabalho de grande fôlego, que se define pela complexidade, com personagens muito trabalhados, com espaço e tempo alargados, e onde cabem referências a outros géneros. Ou seja, é possível incluir num romance fragmentos que, se fossem avaliados isoladamente, poderiam ser considerados um conto, uma crónica, um pequeno ensaio ou, mesmo, um poema. Nessa medida, trata-se de um género literário bastante completo. O que não quer dizer que não tenha vontade de trabalhar outros géneros. Às vezes, há certos temas que requerem formas específicas.

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras?

 

Acredito que, de alguma forma, a escrita de letras acaba por ser parente da escrita de poesia e, também, do grande gosto que tenho por ouvir música. Em Portugal, temos enormes escritores de letras e, claro, essas são as grandes influências, são esses os ecos que me chegam à memória na hora de trabalhar uma letra. Ao mesmo tempo, embora haja grandes diferenças entre escrever palavras para serem cantadas ou para permanecerem sozinhas numa página, há que recordar que, nas suas origens, a poesia nasceu para ser cantada, muitos dos seus principais recursos têm o intuito de lhe dar harmonia. De certa forma, a poesia aspira sempre a ser música.

 

Que peso tiveram as várias distinções literárias na consolidação da sua carreira?

 

Tiveram bastante importância justamente a esse nível. Faço uma distinção grande entre carreira, a evolução profissional, e a obra, a evolução artística. No que diz respeito à carreira, as distinções literárias acabam por ser marcantes, uma vez que chamam a atenção sobre o trabalho que se faz, o que cria curiosidade e, para muita gente, dá uma garantia de qualidade. Já quanto à obra, não creio que tenham o mesmo impacto.

 

Em quantas línguas do mundo se pode ler José Luís Peixoto?

 

Periodicamente, faço uma contabilização das línguas em que tenho livros publicados, mas não estou sempre a par desse número. Recentemente, publicaram-se livros meus pela primeira vez em idiomas como o arménio, o estónio, o coreano e o bengali, por exemplo. Neste momento, são mais de 30 idiomas, o que corresponde a um número muito superior de países, uma vez que há múltiplas línguas que são lidas em vários países. As edições de Espanha, por exemplo, são distribuídas em toda a América Latina, do México à Argentina. Isto não quer dizer, no entanto, que os livros sejam muito lidos em todos os países em que são publicados. Essa difusão depende de uma série de circunstâncias, como a situação da editora, o investimento que faz na difusão do livro e, claro, a receção do mesmo em cada país.

 

Que recordações de Beja e dos tempos de colaboração com a revista “Rodapé”?

 

Tenho as melhores recordações desse tempo. Recordo muito bem o dinamismo e a generosidade do Joaquim Figueira Mestre, que considero um visionário da cultura e do Alentejo. A própria criação dessa revista, chamada “Rodapé”, era um sinal disso. Criar uma revista com aquela qualidade, a partir de uma biblioteca no Alentejo, é um feito que, tantos anos depois, ainda não foi igualado. Ao mesmo tempo, claro, eu era mais jovem e isso também tinha alguma influência no meu próprio dinamismo. Ainda hoje tenho muitos amigos em Beja que conheci nesse tempo e, por isso, voltar a Beja e à Biblioteca José Saramago é sempre um prazer.

 

Ser alentejano e viver parte da vida no Alentejo representou uma fonte de inspiração ou de limitações para o começo da carreira literária?

 

Em nenhum momento foi uma limitação. Ainda na adolescência, houve um momento que fez toda a diferença, refiro-me a quando percebi que podia escrever sobre aquilo que me rodeava. Ao contrário do preconceito infantil que tinha, a literatura não tinha de ser feita com algo distante de mim. Essa ideia aconteceu quando li alguns autores alentejanos e, nessas páginas, reconheci muito do que também era o meu ambiente. A partir daí e ao longo dos anos, tive muitas oportunidades de perceber que ser alentejano é uma enorme vantagem. Essa vivência e essa perspetiva do mundo dão-me um mundo próprio, e esse património é o mais valioso que um escritor pode ter.

 

Que peso tem, atualmente, a literatura de viagens na carreira de José Luís Peixoto?

 

Desde há cerca de quinze anos que as viagens estão muito presentes na minha vida. Os meus pais contagiaram-me com esse gosto de ir a outros lugares, querer conhecer outras realidades. Quando os meus livros começaram a ser publicados no estrangeiro, comecei também a ter muitos convites para apresentá-los em múltiplas geografias. A partir de 2008, comecei a colaborar com revistas dedicadas às viagens. Em 2012, decidi fazer uma longa viagem até à Coreia do Norte e escrever o meu livro “Dentro do Segredo”, que foi um grande êxito. Logo ao escrever esse livro, eu sabia que estava a abrir uma nova ramificação no meu trabalho, sabia que queria continua a escrever livros que seguissem essa direção. Em 2016, publiquei “O Caminho Imperfeito” e, desde então, tenho mantido diversas colaborações na imprensa e na internet onde cultivo esse tipo de trabalho. Infelizmente, vivemos num período em que as viagens estão bastante limitadas, mas tenho esperança de voltar a viajar e, nessa altura, voltar a essa escrita de forma mais ativa. Para mim, escrever sobre aquilo que está mais longe é também uma forma de escrever sobre o que me é mais próximo. Quando olhamos para o que é diferente e o reconhecemos como tal, estamos implicitamente a tomar consciência do que é familiar para nós.

 

Qual o impulso/estratégia para dar início a uma nova criação literária?

 

Normalmente, tenho ideias que se mantém na minha cabeça durante anos. Vou resolvendo o que tenho em mãos de momento, mas mantenho certas ideias que, de vez em quando, reaparecem. São quase sempre essas ideias que decido trabalhar em livro. Quando termino um projeto, avalio o momento, as opções que tenho e vou a esse “armazém mental” onde guardo aqueles trabalhos que não quero deixar de fazer durante a minha vida. Então, de acordo com as condições, dedico-me a um dado trabalho. Ainda assim, ao longo da escrita de um romance, por exemplo, passa-se por muitas fases, sendo necessário conciliar espontaneidade e reflexão.

 

Que papel desempenham outras expressões de arte na literatura de José Luís Peixoto?

 

Têm muita importância. Cada arte tem a sua forma de abordar a realidade. Creio que seria o somatório de todas as artes que, idealmente, conseguiria exprimir todas as dimensões daquilo que é a experiência de estar vivo, toda a complexidade do mundo. Ao longo dos anos, tenho desenvolvido múltiplas parcerias com artistas de outras áreas. Aprendo sempre bastante com esses projetos, sinto sempre que evoluo e, ao mesmo tempo, é uma forma de lidar com a solidão que está sempre presente na escrita.

 

Alguns momentos inusitados vividos ao longo do percurso literário…

 

São muitos, mas, quando preciso de lembrar-me, tenho sempre dificuldade. Acredito que, depois de terminarmos esta conversa, ao longo do dia, hão de começar a chegar vários episódios à minha cabeça. 

 

Qual a sua opinião sobre o atual estado do universo literário em Portugal?

 

Penso que não é muito diferente do que acontece noutros países. Por sermos um País bastante coeso, com uma dimensão que não é enorme, tudo acaba por ser um pouco condensado. Ainda assim, creio que há um pouco de tudo, gente que faz o seu trabalho com mais e com menos honestidade, há dificuldades e vantagens. Não é um meio fácil, mas não creio que seja fácil em nenhuma parte do mundo. Ainda assim, sou bastante otimista. Se olharmos para a história do nosso País nas últimas décadas, reparamos que temos um nível de educação inédito na nossa história e, por consequência, temos um número de leitores também inédito. Está muito difundido o estereótipo de que antes se lia mais do que agora, mas estão aí os números a demonstrar que não é assim. Hoje, vendem-se mais livros, as bibliotecas têm mais movimento e, de um modo geral, as pessoas têm mais livros em casa. Essa situação dá dinamismo ao mundo livreiro e, por consequência, ao meio literário nas suas mais diversas vertentes.

 

Qual o seu posicionamento em relação ao Acordo Ortográfico?

 

Não creio que seja um assunto relevante. Os desafios que a literatura me coloca vão muito para além da ortografia. Compreendo que algumas pessoas estejam sentimentalmente agarradas à ortografia com que aprenderam a ler e a escrever, não compreendo que sejam violentas para com as outras devido a um tema tão insignificante.

 

Como tem sido vivido este período de ‘stand by’ no mundo?

 

Já publiquei dois livros neste período. Em 2020, publiquei o livro de poesia “Regresso a Casa”, que se refere um pouco ao momento que atravessamos e que, depois, se expande para a ideia de “casa”, as diversas “casas” que temos, concretas e simbólicas, e, também, a “casa” que podemos ser para os outros. Em 2021, publiquei o romance “Almoço de Domingo”. Já tinha iniciado a escrita deste livro em 2019. Quanto a “Regresso a Casa”, foi um projeto imprevisto, nasceu na primeira quarentena, em março do ano passado.

 

O que está na “manga” a curto e médio prazo?

 

Neste momento, estou naquela fase em que analiso várias possibilidades. Acredito que qualquer uma delas será forte, mas ainda preciso de decidir a qual me vou dedicar.

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