Diário do Alentejo

Crónica de João Mário Caldeira: “Donos do Tempo”

30 de junho 2021 - 14:00

Nas zonas onde chega o bafo do Mediterrâneo parece haver uma propensão especial para o sonho. Nota-se nas pessoas resguardo nos modos. Respeito pelo ócio. Preocupação em dar pausa à pressa, que no Alentejo se diz dar tempo ao tempo.

 

O stress com que os netos de celtas e saxões pagam o seu progresso a norte da Europa, tem no sul um curso reduzido. No norte corre-se nas ruas em busca de riqueza, no sul as pessoas sentam-se à sombra de uma parede à procura de descanso, maldizendo habitualmente a sorte de não poderem ter mais.

 

No Alentejo, tal como em toda a orla do ‘Mare Nostrum’, não falta gente que cultive o vagar, coisa que igualmente prezam os irmãos do lado islâmico. Arrastam-se as conversas. Ninguém quer convencer ninguém. Poupam-se as palavras. Evitam-se as hipérboles. Obrigam-se os vocábulos a dizerem só o que é preciso para não perderem parte do significado. Pouco importa se um mesmo assunto tem várias interpretações. Perante isso, encolhem os ombros, mais por comodismo que por indiferença. As pessoas afastam-se quando se gera uma discussão. Fica mal atentar contra o sossego. É tempo desperdiçado, dirão os que estão presentes.

 

A demora é quase um rito. Em geral não se estranha a calma dos indecisos. Convive-se bem com o adiamento. “Estou à espera de me ir embora”, ouve-se amiúde. “Ir para aonde, se estou bem aqui?!”. Entretanto, se as pessoas se decidem, partem mesmo. O sonho é maior nos que têm tempo para pensar e quando ele se transforma em delírio ninguém aguenta o desafio. Os primeiros barcos portugueses que aportaram à Índia foram comandados por um alentejano de Sines, mais tarde ligado à Vidigueira.

 

Nas imediações do mansíssimo Mediterrâneo e seus anexos, domesticaram-se pela primeira vez animais, nasceu a agricultura, a escrita, a democracia, a filosofia, o primeiro exército do mundo e três grandes religiões com um mesmo Deus. É obra! Talvez o sol ajude, mas para tanto não terá sido estranho o exercício continuado de muitas horas de cisma. De concentração. De sestas. De bocejos. De sombra.

 

Mais que complicado, o homem do sul é complexo. Introspetivo. Demorado. Minucioso a desatar nós. Senhor do seu nariz. Cioso da sua tranquilidade. Circunspecto. Descrente de verdades, mesmo que eternas. Talvez por ter ultrapassado alguns tabus, pensa com desassombro e age em conformidade. No panorama nacional os alentejanos ganharam direito à diferença. Está em moda falar deles, se calhar por isso mesmo. Na maioria das vezes metendo-os a ridículo. Reciclam-se casos ou partes do seu dia-a-dia, com que eles próprios se divertem, transformando-os em anedotas desligadas do contexto. Todavia a sua cultura, melhor ou pior, vai resistindo.

 

Apesar da concorrência dos meios de informação, continua ainda entre eles o hábito de contar. Hoje todavia, citam-se quase só partes acontecidas com este ou aquele e que geram um gozo solidário entre os membros da comunidade. São instantâneos do dia-a-dia. Casos breves, espécie de ‘cartoons’, mais consentâneos com o ritmo da vida atual.

 

Muito diferentes eram as histórias dos antigos contadores que tinham por missão afrontar o tamanho das horas tornando mais suportável a dimensão dos dias. O importante, então, era matar o tempo ou pelo menos enganá-lo no seu desatinado correr. À mesma latitude, os contos das mil e uma noites não terão tido outra finalidade senão preencher as horas vagas dos homens do próximo oriente.

 

Numa das aldeias do sul havia um sujeito meio afidalgado com alguma coisa de seu que também não sabia como lidar com o tempo. As horas em excesso amarguravam-no tanto que tinha necessidade de reparti-las com amigos e conhecidos. Para tanto passava grandes bocados do dia nos locais onde eles trabalhavam contando-lhes histórias de caça, atividade que quase exclusivamente lhe ocupou a existência. Só que não havia histórias para tantas horas de conversa. Esgotado o conteúdo do plausível, o respeitável homem entrava pelos domínios da divagação, parecendo não dar por isso. Ficaram na memória do povo as suas histórias fantásticas, onde ressalta o desnorteamento temporal, coisa não inédita nos grandes contadores. Como muitos alentejanos antigos, o homem perdia-se no tempo, para já não falar nos caminhos da razão. Contava ele que um dia se sentou no marco de uma propriedade para descansar de uma volta às perdizes. Desejoso de meter conversa, aproximou-se um cabreiro que guardava os bichos nas imediações. Conversa para aqui, conversa para ali, o caçador achou necessidade de mostrar ao moiral os seus dotes de emérito atirador. Para tanto mete-lhe na mão uma moeda e pede-lhe para a lançar ao ar, desfechando-lhe em seguida uma carga de chumbo. Com o impacto a moeda desapareceu nos céus. 

 

Até aqui tudo bem. O homem não fez mais do que reafirmar a habilidade da sua pontaria e a potência da espingarda, contando a cena com mais ou menos prosápia. Só que não se deteve nesse ponto crucial e dilatou por mais um ano a duração da história:

 

- Então não é que na época seguinte vou sentar-me no mesmo marco e cai-me a moeda na copa do chapéu?!...

 

Como se vê, há uma propensão para o sonho entre os alentejanos, algum exagero na autoestima e uma indiferença generalizada pela duração do tempo. Coisa talvez do clima.

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