Diário do Alentejo

“Fascina-me quem escreve acima da banalidade”

19 de abril 2021 - 10:55

Texto Luís Miguel Ricardo

 

“Martinho Marques é só um alentejano que nasceu em Albernoa. Já fez 71 anos. Habita Beja e julga que haveria de viver bastante menos se residisse fora do Alentejo”. Assim começa por se definir o homem cuja infância foi passada entre o monte alentejano, onde habitava, e a escola primária na aldeia que o viu nascer. Depois, para prosseguir estudos, atracou ao Liceu de Beja e mais tarde ao Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, em Lisboa. No universo profissional foi técnico de operações de meteorologia na Força Aérea e professor nas disciplinas das áreas da Informática e da Comunicação. Contudo, refere ter ganho a vida ajudando a aprender matemática durante mais de 30 anos, “a maior parte dos quais antes da conclusão duma licenciatura em Ensino da Matemática, pela Universidade Aberta.”

 

No campo das artes literárias, começou a evidenciar-se em 1967, com 17 anos, quando ganhou o concurso “Poetas e escritores para amanhã”, promovido pela Emissora Nacional, nas modalidades de quadra popular e romance juvenil, na única vez que refere ter ousado submeter-se a um concurso literário. Em 2000, a Câmara de Beja atribuiu-lhe a medalha de mérito municipal, grau prata. Em 2002, a revista “Mais Alentejo” concedeu-lhe o prémio “Mais Literatura”. Da sua bibliografia fazem parte mais de 20 títulos. 

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras?

 

Vocação, não sei se a tenho, nem sei se sei o que é. Mas foi talvez a leitura que me criou entusiasmo para ir de livro em livro e começar a escrever, sem nunca ter conseguido, pelo menos, até agora, deixar-me deste exercício, que nunca me foi ofício. Não deve ter havido nada que não me influenciasse, e não só os escritores, mas tudo o que, fora ou dentro dos livros, me repeliu ou me impeliu a escrever. Grande parte terá vindo dos autores que na escola me foram apresentados, mas outra parte também de todas as outras coisas, sem que se excluam os campos do “meu monte”, onde falaria pouco e compensava escrevendo. Aí pelos meus 14 ou 15 anos já eu talvez escrevesse coisas que um dia acabaram numa festiva fogueira.

 

O porquê da poesia como a modalidade literária de eleição?

 

Não a escolhi. Mas, desde muito cedo, devo ter sido captado para o que comummente vamos chamando poesia. Seja em que género for, interessa-me aquilo a que, na falta de melhor expressão, eu chamo “a escrita artística”. Quem tivesse a paciência de percorrer a minha escrita em prosa poderia concluir que quase toda ela é decomponível, sem ser muito difícil achar nela as redondilhas ou os decassílabos, com a métrica que me embala desde os tempos em que ouvi dizer poesia ou escutei versos cantados e li os primeiros poetas, não apenas os constantes das seletas literárias que se usavam nesse tempo, em que também as gramáticas traziam algumas páginas sobre versificação, mas muitos outros para que esses me foram convidando. A esta distância, creio que Cesário Verde e também Guerra Junqueiro terão sido dos que mais me legaram os seus ritmos. Julgo que declamadores como João Villaret e também Manuel Lereno, com quem me encontrei ainda na antiga Emissora Nacional, também me embebedaram os ouvidos.

 

Viver no Alentejo é fonte de inspiração ou de limitações para a arte da escrita?

 

O viver no Alentejo, para mim, não é limitação. Eu não sei como seria se tivesse nascido noutro sítio, mas de certeza era outro. A minha infância rural marcou-me profundamente. O meu convívio com as coisas mais elementares terá sido decisivo para a forma como escrevo. Como também eu não seria o mesmo se não tivesse um dia abandonado o monte. Mas, se calhar, não sou exemplo para ninguém, até por nunca me ter considerado escritor. Que não me foi profissão. Admito que o escrever me tenha ajudado o espírito, contudo, se não tivesse feito mais nada na vida, teria morrido há muito. E creio que a minha escrita é função do que fiz no exterior dela.

 

Dos trabalhos desenvolvidos, há alguns que tenham sido mais marcantes?

 

Não é fácil distinguir um trabalho. Talvez o conjunto dos dez livros a que chamei “Obra em sombra” (2014-2017) tenha sido das maiores loucuras a que me dei. Mas não me esqueço d’ “O Nómada Sentado”; nem de “Súmula Telúrica”; nem dos dois livros em que convergi na Índia com os amigos Cunha e Vítor Silva; nem de “mais alta a água”, que seguiu o crescimento da Albufeira de Alqueva; nem ainda de “com o tamanho do tempo – por Beja, onde são maiores as horas e os horizontes”, uns devedores a quadros ou desenhos do Paizana e outros a fotos do António Cunha.

 

Alguns episódios inusitados vividos ao longo do percurso de autor?

 

Tantos! Mas citava um, que talvez seja indicado para contar a alguém que é dirigente da Assesta. Há muito perto de 40 anos, eu e alguns amigos da ex-ANES (Associação de Novos Escritores do Sul) fomos uma noite a Évora divulgá-la, em sessão para a qual tínhamos convidado um certo grupo coral. Creio que, a bem dizer, não haveria na sala ninguém diretamente interessado no assunto que lá levávamos, mas a sala estava cheia. É que os elementos do grupo convidado tinham levado os seus familiares. Que pense nisto quem lamenta a falta de gente nos encontros culturais.

 

Que papel desempenham as novas tecnologias na vida do autor Martinho Marques?

 

Não sou de redes sociais e não mantenho ‘blogs’, que haviam de sujeitar-me a uma atenção diária. Mantenho só, há três anos, um canal no Youtube (https://www.youtube.com/channel/UCRQv_f44ZTfYlNYRNIRgSrg), onde o “Nómada sentado” vai deixando alguns poemas, acompanhados de voz. Sobre as novas tecnologias, penso que tudo concorre com tudo e tudo auxilia tudo. Seja qual for a forma que revistam. O ‘e-book’, por exemplo, sem ser sedutor, é útil. Em suma, as novas tecnologias, tanto podem afastar como podem ajudar a confluir, a divulgar e até a discutir cultura e literatura. Tudo depende da forma como cada um as usa e as suplanta ou se deixa submergir.

 

Qual sua a opinião sobre o universo literário em Portugal?

 

Vou tentando acompanhar o que de novo se edita e fascina-me quem escreve acima da banalidade, se não pretender criar do nada todas as coisas. Talvez eu nem falar possa dos novos escritores, porque os vivos que mais li já têm outros mais novos do que eles. Parece-me que foi ainda ontem que “Morreste-me” me deu um murro na alma e o autor já é hoje um consagrado. Nem sequer pude ler tudo daqueles que mais admiro... e a lista não é pequena.

 

Por me conhecer a mim, nunca abordei editoras. Sei que é o “ser conhecido” que mais decide edições. E sei também que muitas edições com chancela de editoras são, na prática, financiadas pelos autores, que contratualizam a aquisição de uma avultada parte das tiragens. Como nunca me achei nessa situação e a maior parte das vezes me assumi como um autor-editor, só tive de me entender com o ‘designer’ e a gráfica, com os quais estava à vontade, porque já os conhecia e, além de confiar neles, também contava com eles.

 

E o acordo ortográfico? Qual o posicionamento face à polémica?

 

Por já ter atravessado outros acordos, também este não me aflige, embora faça questão de não me guiar por ele. É que, ao contrário de outros anteriores, que trouxeram alterações mais pontuais e mais facilmente aceitáveis e digeríveis, este, com uma extensão muito maior e com as suas inúmeras incoerências, que prescindo sequer de exemplificar, tantas são as que já foram apontadas, na prática contribuiu para gerar barafunda. Penso que atualmente o mais comum é cada um usar o seu próprio acordo que, as mais das vezes, não é nem o novo nem o velho. Daí que, perante o estado a que se chegou, eu entenda que o melhor é ficar quieto e escrever como escrevia, embora não acredite que ainda esteja por cá quando as águas ortográficas ganharem algum repouso.

 

Como tem sido vivido este período de ‘stand by’ no mundo?

 

Não fui dos mais afetados pela pandemia. Antes dela, já eu era um tanto ou quanto de trazer por casa. Mas agora, que existimos mais na ausência e mais privados dos abraços físicos, é o próprio impedimento que nos pede o exercício. Mesmo neste ‘stand by’, em que se pensa ainda mais no mundo, tenho escrito e mantenho a intenção de continuar as minhas magras edições de autor, como as últimas três, que limitei a 100 exemplares numerados. Por saber que “o meu mercado” é menor que a minha rua.

 

O que está na “manga” a curto e médio prazo?

 

Gostava de me citar, dizendo que “O meu plano é plano,/ liso,/ nada.” e também: “Sou um lento permanente,/ continuamente contrário/ a escrever, se de repente/ e a cargo do calendário.”

 

Mas, sem planificação, a escrita vai-se fazendo. Para além de mais dois livros, que eu não sei se ainda terei a saúde e a paciência para poder concluir, apesar de parte deles já estar fora da cabeça, porque os dois já possuem muitas páginas, organizei uma nova coletânea de poemas, sempre a crescer e com título, que não menciono, por imaginar que pode vir a ser ultrapassado por outro melhor que surja.

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