Diário do Alentejo

“Quero acreditar que o mais marcante esteja para vir”

15 de abril 2021 - 15:05

Texto Luís Miguel Ricardo

 

Dora Nunes Gago nasceu em São Brás de Alportel, Algarve, a 20 de junho de 1972. Aos 18 anos a continuação dos estudos levou-a ao encontro da Universidade de Évora. Concluída a licenciatura, foi-se deixando ficar por terras alentejanas, lecionando em diversas escolas da região e, simultaneamente, fazendo-se mestre em Estudos Literários Comparados, na Universidade Nova de Lisboa. Em 2001, decidiu partir à descoberta de outras geografias, e o Uruguai foi o destino, onde desempenhou, durante um ano, as funções de leitora do Instituto Camões, em Montevideu. De regresso a Portugal, fez doutoramento e fixou-se em Vila Nova da Baronia, onde ainda mantém residência e onde retorna sempre que vem carregar baterias de portugalidade, porque o mundo passou a ser a sua casa. Atualmente é diretora do departamento de Português da Universidade de Macau, território onde está radicada há vários anos, depois de ter passado pelos Estados Unidos.

 

Na literatura, é autora de uma já vasta bibliografia: “Planície de Memória” (1996); “Sete Histórias de Gatos” (2004), em coautoria com Arlinda Mártires; “A Sul da Escrita” (2007); “Imagens do Estrangeiro no Diário de Miguel Torga” (2008); “As Duas Faces do Dia” (2013); “Travessias – Contos Migratórios” (2014); A Matéria dos Sonhos” (2015); “Uma Cartografia do Olhar: Exílios, Imagens do Estrangeiro e Intertextualidades na Literatura Portuguesa” (2020).

 

Dora conta no seu histórico com várias distinções, das quais destaca a dupla vitória no concurso “Descobre a Tua Terra”, promovido pela Comissão dos Descobrimentos e pelo Instituto Português da Juventude, cujo prémio a levou a viajar até Inglaterra, Macau e Hong Kong, naquele que diz ter sido o seu batismo de voo; e o Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca, vencido no ano de 2006.

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras?

 

Aconteceu muito cedo. Foi algo que parecia já estar entranhado dentro de mim. Adorava ouvir histórias e gostava de imaginar, de criar personagens. A leitura foi uma descoberta extraordinária que se tornou um vício. Saber que podemos conhecer e viver tantas vidas sem sairmos do lugar! Os autores que me marcaram foram imensos, desde Dickens, Steinbeck, Hemingway, Faulkner, Tolstoi, Dostoievsky, Torga, Maria Ondina Braga e tantos outros. Aos 12 anos publiquei o primeiro poema.

 

Dos vários registos literários, algum que seja o de eleição?

 

Penso que sou sobretudo ficcionista, que me exprimo melhor através da narrativa breve, mas por vezes os poemas “acontecem-me”, surgem primeiro de rompante, mas depois tem sempre de haver um trabalho de “poda” da palavra. Cada vez mais, sinto que sigo o princípio do Torga que dizia escrever “a tirar palavras do texto”, rumo ao essencial.

 

O que representa a sua ligação ao Alentejo?

 

No fundo, para mim, “ser alentejana” é um estado de alma, algo muito espiritual. Quanto a limitações, sabemos que significa ser da “periferia” e estar fora do centro, normalmente conotado com a capital, onde “tudo acontece”.

 

Que influências têm as vivências do mundo no mundo da escrita de Dora?

 

Quando a nossa vida se dispersa por diversos continentes, a nossa identidade vai sendo reconstruída através de todos os elementos distintos que vamos incorporando. No meu caso, até agora, vivi 18 anos em S. Brás de Alportel, 20 anos no Alentejo, quase um ano no Uruguai, nove em Macau e alguns meses nos Estados Unidos. Claro que a inspiração vem de todo esse ‘cocktail’ de vivências e circunstâncias. Também as viagens por países com culturas muito distintas, como a Tailândia, Filipinas, China, Malásia, Camboja ou Indonésia são uma inesgotável fonte de aprendizagens, de paisagens, cheiros e factos que se nos colam à alma, para depois se materializarem na escrita.

Do trabalho desenvolvido ao longo da carreira, algum que tenha sido mais marcante?

Quero sempre acreditar que o mais marcante esteja ainda para vir.

 

Algum momento inusitado vivido ao longo do trajeto literário?

 

Em 2007, no lançamento do “A Sul da Escrita”, em Santiago do Cacém, aconteceu um facto cómico que foi constatar que estava vestida de forma igualzinha à vereadora da Cultura. Parecíamos gémeas. Nesse lançamento, também me emocionou ver a minha professora de Literatura do 12.º ano que foi de propósito, de Faro, para assistir à cerimónia.

 

Qual a importância das novas tecnologias para o futuro da literatura?

 

Penso que podem ser uma mais-valia, pois permitem uma maior divulgação das obras a um público mais vasto, atenuando as barreiras espaciais.

 

Qual a opinião sobre o universo literário em Portugal?

 

Penso que há novos valores muito interessantes a emergir no universo literário português. Quanto a editoras, infelizmente, creio que têm surgido algumas menos sérias em elevado número, o que provoca uma completa banalização do ato de publicar. Além disso, no meio de tanta “abundância”, pode haver dificuldades, por parte do público, em distinguir o trigo do joio.

 

E o acordo ortográfico?

 

Relativamente ao acordo ortográfico, sou contra. Penso que, entre outras questões, desrespeita a etimologia da nossa língua. Felizmente, em Macau não se encontra em vigor. Por isso, apenas o uso quando certas editoras ou revistas académicas o exigem.

 

Como tem vivido este período de ‘stand by’ no mundo, por terras do Oriente?

 

Na verdade, em Macau temos vivido numa bolha de proteção, à margem do vírus. Aqui, a pandemia chegou mais cedo, mas foram tomadas, desde o início, medidas drásticas para conter o vírus, como as restrições de viagens, fecho de fronteiras, uso imediato de máscaras, que permanece, mesmo sem nenhum caso há mais de um ano. Em Macau, apenas houve verdadeiro confinamento em fevereiro de 2020, na fase inicial. Durante esse semestre, as aulas decorreram ‘online’, mas desde setembro, voltaram a ser presenciais. Sentimos mais a situação pandémica devido à impossibilidade de viajar. De resto, podemos fazer uma vida normal. Continuo a escrever, embora o meu maior problema seja a falta de tempo e a dificuldade em conciliar a necessidade da escrita com as obrigações profissionais, que têm exigido cada vez mais. Iniciei funções como diretora do departamento de Português da Universidade de Macau, em julho, e tem sido muito desafiante, pois é um departamento muito grande, com cerca de 35 docentes a tempo inteiro.

 

O que está na “manga” a curto e médio prazo?

 

Há vários projetos em estado embrionário: um livro de contos, um de crónicas de viagem, outro de poesia e talvez até um romance.

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