Diário do Alentejo

Crónica de Vanessa Schnitzer: “Vinho e Eça”

08 de abril 2021 - 15:40

Texto Vanessa Schnitzer

 

“Amante e boémio, com os poderes desinibidores capazes de fazerem espoletar o amor, ou, ao invés, bálsamo atenuante para desilusões amorosas, o vinho ocupa na vida e na literatura um lugar proeminente”. (João Rodil).

 

Nestes tempos em que a pandemia vai longa, torna-se cada vez mais difícil desviar as atenções da alma incorrigível, que insiste em desvirtuar muita seiva da humana da ação para alimento dos prazeres do espírito, entre os quais a literatura e o vinho merecem especial destaque. Como é sabido, o vinho sempre esteve intrinsecamente associado à literatura porque ambos tocam a alma, alegram o dia e melhoram a vida. É indissociável a relação simbiótica que existe entre o vinho e a literatura, seja o vinho utilizado como veiculo ou instrumento indispensável à atividade da escrita, como metáfora para ilustrar a realidade ou, por fim, a relação análoga que estas duas artes estabelecem com a verdade.

 

Para não complicar muito decidi encapsular a literatura numa só figura, incontornável no panorama literário português. Eça de Queiroz assume-se como uma personalidade fundamentalmente cosmopolita que colocava o seu país natal num lugar à parte, entre uma ruralidade “saudável” e uma tentativa, muitas vezes lograda, de se elevar ao nível da Europa “civilizada”.

 

Nos romances de Eça de Queiroz, como o sobejamente conhecido “A Cidade e as Serras”, o vinho assume particular destaque, quase como se de uma personagem se tratasse. Jacinto, na primeira parte do romance, depara-se com as progressivas crises de desgosto causadas pelo cosmopolitismo parisiense e só depois, na serra, é que encontra o tal consolo, deixando escorregar o espírito na graça cintilante de um pitoresco inesgotável; e o vinho, desta vez bem português, revestido de uma tal vitalidade sagrada, tão distinto “do desconsolado néctar” das terras do Médoc, irá transformar-se num elemento regenerador, em elixir capaz de transmitir uma força vital de que Jacinto se encontrava completamente desprovido em Paris. O vinho de Tormes é o sangue dessa terra pátria da qual Jacinto se afastara, perdendo a força vital que só ela lhe podia transmitir:

 

“Mas nada o entusiasmava como o vinho de Tormes, caindo do alto, da bojuda infusa verde – um vinho fresco, esperto, seivoso, e tendo mais alma, entrando mais na alma, que muito poema ou livro santo. Mirando, à vela do sebo, o copo grosso que ele orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de optimismo na face, citou Virgílio: - Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras?”.

 

O vinho português, um elemento identitário essencial, indicador das raízes profundas que um individuo ou uma família possuem na terra portuguesa. O vinho português de boa lavra e velha casta participa de um ritual secular que vem das nossas origens latinas, e da implantação, com os pés de vinha, de uma civilização ligada justamente a uma “arte de bem viver”. Com o progressivo desenraizamento, afastamo-nos da vida e dos valores, e a oportunidade que nos traz o confinamento poderá ter um certo efeito pedagógico na aproximação das nossas vidas ao tal ‘savoir-vivre’ queirosiano.

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