Diário do Alentejo

Rui Nabeiro, segundo o olhar romanceado de José Luís Peixoto

26 de março 2021 - 10:30

O escritor José Luís Peixoto mergulhou nas memórias de vida do empresário Rui Nabeiro e apoderou-se delas, fazendo-as suas e transpondo-as para o papel, num romance situado no futuro com um olhar para o passado, intitulado “Almoço de Domingo”, que será publicado pela Quetzal no próximo dia 25 de março.

 

Esta experiência não é totalmente nova para o autor de Galveias, que já anteriormente transportara José Saramago para dentro de um romance, “Autobiografia”, publicado em julho de 2019. Agora “sobe um degrau”, porque a personagem retratada “ainda está aí”, disse o escritor em entrevista à Lusa.

 

Trata-se da história de um “homem de 90 anos, que olha para o seu passado e faz um balanço de vida a partir de episódios significativos da sua história pessoal, que em muitos aspetos tocam a do próprio país, mas tem esse outro lado que para mim foi muito desafiante que é o facto de ter como referência a história de Rui Nabeiro”, contou o escritor.

 

Contudo, a pessoa é subentendida na leitura do texto, pelo percurso que segue, pelo império que cria, pela geografia e pela família em que se insere, a partir das quais tudo parte, porque o sobrenome Nabeiro nunca aparece no texto. José Luís Peixoto explica porquê: “do ponto de vista do texto, é um romance e como romance é um exemplo, a personagem é uma personagem, não é um texto histórico não é um texto biográfico”. Os factos estão lá, mas para quem lê o texto é um aspeto que pode ser considerado ou não, não é essencial, porque trata-se de um “texto romanesco”.

 

A história deste romance começou em 2019, quando o empresário Rui Nabeiro assistiu a umas entrevistas de José Luís Peixoto, que ainda não conhecia pessoalmente, e lhe propôs a escrita da sua biografia. Para o escritor, não era interessante a ideia de escrever uma biografia, por ser um texto completamente diferente do romance, e então fez uma contraproposta: escrever um romance que tomasse como ponto de partida essa experiência. “Há uma oportunidade de dispor de um património de experiência e de vida, por um lado a vida de uma pessoa de 90 anos, a riqueza de privar com uma pessoa dessa idade com alguma realidade e com disponibilidade de partilhar memórias, acrescido de toda a especificidade da sua história, que é incrível”.

 

Rui Nabeiro nasceu numa família humilde, começou a trabalhar cedo a ajudar o pai e os tios na torra do café, e acabou por construir um império familiar que envolve negócios de café, azeite e vinho.

 

O livro está estruturado em três partes, cada uma delas é um dia e esses dias estão no futuro, embora no livro sejam o presente. São os dias 26, 27 e 28 de Março de 2021, que é o dia em que o Rui Nabeiro real e o ficcional fazem 90 anos. Esse dia é domingo, daí esse “Almoço de Domingo” que é o título do livro e vai ser o momento em que tudo se cruza, num “final bastante apoteótico”. Em cada um desses dias, existe o tempo em que a personagem tem 89 anos e é escrito com base naquilo que é a vida dele, que é uma vida ativa e com uma agenda intensíssima.

 

“O livro é mais constituído por memórias do que descrições do presente, e vão surgindo aleatoriamente”, de tal forma que há um recurso muito utilizado, que é o irromper de recordações específicas, quando estão a ser descritas certas situações, que no momento da leitura não se entende de onde vêm. Exemplo disso é um momento em que a personagem acordou de manhã, está na cama, ainda imóvel, a pensar nas dores da idade e, de repente, “lembrou-se dos óculos de Marcello Caetano”. Esta memória é aqui interrompida, para passar de imediato para a memória “do cheiro avinagrado da massa das farinheiras”. Ideias aparentemente incompreensíveis.

MEMÓRIAS

 

Ao longo do romance as memórias vão compondo um todo narrativo, onde estas memórias se encaixam: quando era mais novo, no âmbito da sua vida profissional, teve um encontro com Marcello Caetano e a imagem dos óculos “sofisticados”, de lentes grossas, armação que prolonga as sobrancelhas e hastes mais grossas do que parecem na televisão, ficou-lhe gravada na memória. “Acontece algumas vezes: no presente existem essas memórias, como dizem os brasileiros, que pipocam e que são prenúncios de descrições que vêm a seguir. Algumas ligadas com aspetos históricos, como Marcello Caetano, Mário Soares, a guerra civil espanhola, a inauguração da Ponte 25 de Abril, são vários, porque Nabeiro esteve presente em muitos momentos da História”. Do mesmo modo que o cheiro das farinheiras remete para a família e a infância no Alentejo, em Campo Maior, a memória da mãe e de duas mulheres sentadas em bancos à roda de um alguidar a encher farinheiras.

 

Estes são outros aspetos do romance de José Luís Peixoto, para além das memórias que tocam a vida pública e os momentos históricos, que é a memória da família e da sua terra natal. “Rui Nabeiro é um homem nascido no início dos anos 1930, com uma história que envolve o Alentejo, tema que me é muito caro, pois ele é do meu distrito [Portalegre]. Mas é um Alentejo particular, que é o Alentejo da raia, como toda a questão de Portugal e Espanha, as histórias do contrabando, e, numa outra dimensão, muito importante, que acho fascinante, que é a questão familiar, daí o almoço de domingo, que é o símbolo da família. É um homem conhecido por ter desenvolvido esta enorme empresa gerida familiarmente”, afirma José Luís Peixoto.

 

Apesar das grandes diferenças, incluindo a idade, o escritor encontra uma identificação e empatia com o protagonista que lhe permitiram conseguir colocar-se no seu lugar e imaginar as situações como se as estivesse a viver, desde logo, pela “ligação muito forte” que tem com as suas origens e com o povo a que pertence, mas também pela morte precoce do pai e o sofrimento que esse acontecimento acarreta pela vida. “Para mim, trata-se de um processo em que eu tenho acesso a estas memórias e a este património desta pessoa, mas depois tenho que os fazer meus [...] e nesse momento eu estou a ser ele, estou a tentar ver por uma perspectiva que também me inclua, porque é o que pode dar verdade àquelas descrições”.

 

Por isso, se tivesse que dar um “tema” a este romance, seria sem dúvida a memória: “nós constituímo-nos pelo que fazemos, pelo que recordamos pela história que contamos a nós próprios de quem somos”.

 

“O PASSADO TEM DE PROVAR QUE EXISTIU”

 

Há uma frase no início do livro que marca o ritmo da história toda: “O passado tem de provar constantemente que existiu. Aquilo que foi esquecido e o que não existiu ocupam o mesmo lugar. Há muita realidade a passear-se por aí, frágil, transportada apenas por uma única pessoa. Se esse indivíduo desaparecer, toda essa realidade desaparece sem apelo, não existe meio de recuperá-la, é como se não tivesse existido”.

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