Diário do Alentejo

“O alentejano nasce a ouvir histórias. Eu colecionei-as todas”

24 de março 2021 - 17:30

Texto Luís Miguel Ricardo

 

“Mais do que qualquer atributo a destacar ou ato valorativo a publicitar, ser alentejano e natural de Safara é motivo de grande orgulho”. Eis Carlos Campaniço, 47 anos, licenciado em Literaturas Modernas e mestre em Cultura Árabe, Islâmica e o Mediterrâneo, programador artístico de profissão e escritor de créditos firmados.

 

Há vários anos a viver em Faro, é por lá, por terras algarvias, que tem desenvolvido as suas atividades. Já foi investigador de História Medieval Islâmica, na Universidade do Algarve; fundador e diretor da revista cultural “Al Garb”; pertenceu à estrutura de missão de Faro, Capital Nacional da Cultura (2005); foi durante nove anos diretor de programação do Auditório Municipal de Olhão, o mais recente teatro do Algarve; pertence à comissão consultiva para a edição da Direção Regional de Cultura do Algarve.

 

No campo das letras fez-se romancista, ensaísta, poeta (ainda que tenha divulgado pouca poesia) e colunista. Edita presentemente na editora Casa das Letras/Leya. Já teve várias distinções literárias, com destaque para o Prémio Nacional de Literatura Cidade de Almada; o Prémio Mais Literatura e o Prémio Leya, onde foi finalista em 2013.

 

Da sua vasta bibliografia, destacam-se os romances “Molinos”, “A Ilha das Duas Primaveras”,

 

“Os Demónios de Álvaro Cobra”, “Mal Nascer”, “As Viúvas de Dom Rufia”; o ensaio “Da Serra de Tavira ao Rif Marroquino”. É ainda autor de “Analogias e Mitos” e coautor de “Contos Assestas” (Assesta), “A Mística em Prosa” (Fundação Benfica) e “Bode Inspiratório”, um romance escrito por mais de 40 autores nacionais durante o primeiro confinamento.

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras?

Comecei a escrever letras para um conjunto punk rock, que fundámos em Safara, com o nome Réus da Sociedade, e onde as minhas funções se alargavam também à de vocalista da banda. Era, sobretudo, uma música de protesto e de contestação. Cedo me fascinou a criação, em geral, e a literária, com grande impacto. Chego à edição através de um percurso natural e sequencial: grande paixão pela literatura, hábito de leitura, o desejo de escrever, experimentação de escrever e, finalmente, tentar editar, o que acabou por acontecer em 2007, pela primeira vez. Mas é de realçar que começo a escrever romance porque quis contar a minha visão e o que julgo ser a memória coletiva do Alentejo rural durante o Estado Novo.

 

Dos vários registos literários, algum que seja o de eleição?

Acho a poesia o mais sublime dos géneros literários. Não obstante, eu elegi o romance porque me dá espaço e tempo para contar histórias sem abdicar de nenhum pormenor. 

 

Que impacto tiveram as distinções literárias na consolidação da carreira de autor?

Posso ter tido alguma visibilidade, materializada em entrevistas de televisão, rádio, jornais, ou na blogosfera, mas sempre estive ciente de que era um palco momentâneo. Preocupo-me mais com o que está ainda por escrever, da qualidade que busco a cada frase, a cada capítulo, a cada livro, do que ter a pretensão de julgar que cheguei a algum patamar ou estatuto. Os prémios são subjetivos e fugazes.

 

Ser alentejano e crescer no Alentejo foi fonte de inspiração ou de limitações para a carreira?

Viver na província é uma limitação funda para quem quer chegar a um nível alto na carreira de escritor. Porém, considero que ter nascido numa aldeia alentejana foi uma bendição, concomitantemente ao nível da minha formação humana como literária. O Alentejo é absolutamente inspirador: a sua história de sobrevivência, as suas gentes, o seu humor, o seu cante, a capacidade ímpar de socialização, a vocação para a narrativa do “caso” ou para o contar da “parte que se passou com fulano ou sicrano”. O alentejano nasce a ouvir histórias. Eu colecionei-as todas. 

 

Dos trabalhos desenvolvidos, algum que seja mais marcante?

“Os Demónios de Álvaro Cobra”, sem hesitar, porque este livro acarretou um conjunto de mudanças e de oportunidades que se tornaram determinantes para o meu percurso enquanto escritor, conquanto tivesse já três livros editados antes deste. Foi a partir daqui que a coisa se tornou um pouco mais exigente, também.

 

Algum momento curioso experimentado ao longo do percurso de autor?

O escritor é por natureza individualista, egocêntrico e sobrevaloriza muito o seu trabalho. Porém, certa vez, fui convidado a participar no ELA – Encontros Literários do Alentejo, em São Teotónio, e lá acabei por conhecer a Associação de Escritores do Alentejo (Assesta) e muitos dos seus membros. O ambiente era formidável, havia companheirismo e amizade, partilha e admiração mútua. No mundo literário isso é raro. Na nossa vivência, enquanto alentejanos, não. Se dúvidas houvesse (e não as havia!) conclui que pertencia a esta cultura e a esta maneira de estar na vida, e não a outra qualquer. Desde esse dia que sou sócio da Assesta.

 

As novas tecnologias representam uma mais-valia ou uma concorrência para a literatura?

Desde que se leia, qualquer meio é satisfatório, no atual contexto. Uma coisa me parece óbvia, nada substituirá o livro em papel, pois o prazer tátil do livro ou o cheiro bom do papel fazem parte da nossa memória mais primitiva. Haverá coabitação entre todos os meios, certamente, mas o livro em papel ainda estará cá por muitas gerações.

 

Como vai o universo literário em Portugal?

É um fenómeno termos tão bons escritores num país tão pequeno. Sempre foi assim e continua a ser, embora a geração de escritores como Saramago, Manuel da Fonseca, Vergílio Ferreira, Aquilino Ribeiro ou Miguel Torga, entre outros, não tenha paralelo. Às vezes pergunto-me como puderam coabitar tantos grandes escritores num mesmo tempo e espaço. A literatura, contudo, tornou-se um negócio, uma área empresarial como outra qualquer e deixou de contar, em parte, a qualidade dos autores em detrimento do potencial de venda, o que criou uma grande amálgama, cujo resultado se pode apreciar nos tops de venda. Apareceram os autores, em força, tendem a desaparecer os escritores. Aconteceu ainda um fenómeno bizarro: temos mais autores do que leitores. As pessoas preferem escrever a ler. Isto devia ser realmente estudado. Neste contexto, houve quem se aproveitasse do desejo das pessoas quererem editar. Os resultados são perturbadores. Mas, para mim, o pior do nosso panorama literário é o desaparecimento de autores ou o desconhecimento da sua obra – e por vezes até do seu nome, como Maria Velho da Costa, o tal Aquilino Ribeiro (o maior), Hélia Correia, Carlos de Oliveira, José Cardoso Pires, Alves Redol, Urbano Tavares Rodrigues, Vitorino Nemésio ou José Gomes Ferreira, por exemplo. Somos muitíssimo mais pobres por termos silenciado estes autores. Desapareceram do ensino, e das livrarias. Urge dar a conhecer estes grandes nomes e as suas obras às novas gerações.

 

E sobre o acordo ortográfico?

Militantemente contra. Portugal inventou a língua portuguesa, mas não é dono dela, é certo; do mesmo modo que o Brasil tem o maior número de falantes, mas também não o é. Não faz sentido aproximar a nossa variante da brasileira, só porque esta é a mais falada. Este acordo é uma aberração.

 

O que está na “manga” a curto e médio prazo?

Estou a fazer revisão de um novo romance. No primeiro confinamento participei no tal projeto, “Bode Inspiratório”, partindo desta mesma condição de isolamento. O escritor isola-se muito para criar, mas quando é obrigado é uma chatice. Neste período já escrevi poesia, letras, fiz revisão de texto de outros autores e até já gizei um novo romance. Como não escrevo por inspiração, mas por inquietação, o mundo, o país, a nossa terra, continuam a ser combustível para a minha criação.

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