Diário do Alentejo

“Tudo começa com o desenho, depois é que vem a cor e o volume”

22 de janeiro 2021 - 12:00

Texto Luís Miguel Ricardo

 

“Aos 14 anos, depois de muita insistência, a minha avó deu-me o dinheiro para eu comprar um curso de desenho e pintura por correspondência que havia na altura, criado pelo artista e escritor catalão José Maria Parramón. O dia em que aquele material de pintura chegou a casa foi um dos mais felizes da minha vida.” E foi assim que o artista plástico Joaquim Rosa, nascido em 1964 na vila de Castro Verde, começou a aperfeiçoar e a solidificar o gosto e o interesse pela pintura e pelo desenho. Foi também seguindo na senda do aperfeiçoamento que, mais tarde, trocou a capital do Campo Branco por Lisboa para se licenciar em Design Visual. O regresso à planície levou-o também para as salas de aula, atividade que, até hoje, concilia com a sua vocação artística.

 

Do seu percurso de vida atracado à arte, destaca vários projetos como ‘designer’, de que são exemplos a participação na revista “Imenso Sul” e a colaboração com a Câmara de Castro Verde que lhe tem permitido desenvolver trabalhos de continuidade, como os cartazes para a feira de Castro, que já levam quase 30 anos de sequência e que hoje valem, sobretudo, pelas ilustrações. Outra das suas parcerias é com o escritor Vítor Encarnação.

 

Nos últimos anos, o ‘design’ foi colocado de parte, dirigindo o foco artístico para a pintura, tendo, quase sempre, o Alentejo como inspiração.

 

Quando e como começou a aventura pelo traço artístico?

 

Comecei muito novo, antes da escola primária. A minha mãe foi a minha primeira professora de desenho. Com traços simples, ensinava-me a fazer animais, árvores, casas. Lembro-me de um dos primeiros desenhos que fiz, devia ter cerca de quatro anos, com uma caixa de seis lápis de cor, da Viarco, comprada na mercearia da menina Aline. Nesse dia pintei uma paisagem numa folha de papel pardo, acho que me lembro disto porque o desenho foi colocado numa das paredes lá de casa e eu fiquei a achar que tinha feito uma coisa muito importante. Depois lembro-me de encher agendas e blocos de desenhos. Na terceira classe fiz uma história de banda desenhada no caderno das cópias, na capa tinha uma caravela e o rosto do infante D. Henrique e no interior uma aventura de ‘cowboys’. A professora apanhou-me o caderno e eu fiquei a tremer, mas ela acabou por elogiar os desenhos e mostrou o caderno ao resto da turma. A partir dai, quando alguém precisava de um desenho chamava-me. Sempre adorei banda desenhada. A minha primeira biblioteca foi de BD. Uma tia minha disponibilizou-me duas caixas de cartão cheias de livros de BD que eram do filho, e que ela arrumara num canto lá em casa. Eram mais de 500 livros, Tarzan, Cisco Kid, Mandrake, Fantasma, etc. Li aquilo tudo. As férias do verão eram passadas a ler BD e às vezes fazia paragens para desenhar as minhas histórias.

 

Dos vários registos artísticos, algum que seja o de eleição?

 

Acho que é o desenho. Tudo começa com o desenho, depois é que vem a cor e o volume. Sinto-me bem a desenhar com tinta, para não poder voltar atrás, e obrigar-me a resolver o trabalho com os erros que vou cometendo, e os erros tornam-se soluções. Gosto do resultado, porque me surpreendo a mim mesmo.

 

Viver no Alentejo é uma fonte de inspiração ou de limitações?

 

Fonte de inspiração. Há dois aspetos importantes num artista: a técnica e os temas que aborda. Eu tenho a sorte de viver numa região que em termos paisagísticos é maravilhosa, tem uma luz fantástica e por outro lado tenho aqui as minhas raízes, conheço as gentes que aqui vivem, hábitos, costumes, tradições. Procurei e procuro a técnica mais adequada para representar tudo isto.

 

Dos trabalhos desenvolvidos ao longo da carreira, Joaquim Rosa destaca um cartaz que fez em 1991 para um encontro de Cante alentejano, em Castro Verde e, que, de certa forma, o marcou. “Aquilo que faço hoje tem muito a ver com esse cartaz, traços soltos, uma forma de pintar com muita liberdade, por vezes com pinceladas descontextualizadas que desconstroem as figuras. Essa ilustração para o cartaz foi e é importante para mim porque me mostrou o caminho para a técnica que utilizo”.

 

“Quando pinto o Cante, por exemplo, o que faço é ir às minhas memórias de infância, recordar essas imagens e passá-las para a tela. Na rua onde passei a minha infância havia três ou quatro homens que cantavam, via-os a saírem de casa vestidos de ganhões. Essas são as primeiras imagens que eu tenho do cante, depois as saídas ao domingo à tarde com o meu pai, passávamos por várias tabernas da vila onde o cante era presença obrigatória”, lembra o artista plástico. Segundo Joaquim Rosa, recordar o ambiente das tabernas é uma coisa que faz com frequência. “Não me interessa muito a representação naturalista, interessa-me sobretudo o que a memória reteve daqueles momentos”.

 

Algum momento inusitado a destacar ao longo do percurso artístico?

 

A situação mais embaraçosa foi em outubro de 2019. Resolvi aceitar um convite para participar numa exposição em Paris e, por teimosia minha, não quis tirar as telas das grades e assim desmontar os quadros. Levei tudo montado, era chegar lá e pendurar. Quando cheguei ao aeroporto, o volume não passava pelo ‘scanner’, no pouco tempo que faltava para o avião descolar tive de desmanchar a embalagem com os quadros e voltar a refazer tudo, foram momentos de muito ‘stress’.

 

Qual a opinião sobre o universo da arte pictórica em Portugal?

 

Vivemos um momento complicado, sobretudo no que diz respeito à formação. Hoje, nas escolas, o desenho e a linguagem visual deixaram de ser importantes, quem decide que o desenho é muito menos importante que a matemática tem grandes responsabilidades no que está a acontecer. Já tive alunos excelentes desenhadores que, por influência dos pais, por sua vez influenciados pela valorização das aprendizagens na área das ciências e nas possíveis saídas profissionais que dai advém, levaram os seus educandos a formarem-se em engenharia. E depois dos cursos tirados, alguns destes jovens voltaram ao que sempre gostaram de fazer, desenhar. São autodidatas, que se formam assistindo a tutoriais no Youtube que lhe ensinam todas as técnicas, mas que que não lhe falam da Vieira da Silva, do Cutileiro, do Jorge Vieira ou da Paula Rego, não aprenderam que a arte tem uma história que é preciso conhecer. O hiper-realismo desprovido de conceito que prolifera nas redes sociais, onde a técnica se sobrepõe ao conteúdo, é um dos exemplos do acesso facilitado à formação técnica e da deficiente formação teórica dos seus criadores. Acho muito importante que se reveja o ensino do desenho e das artes visuais na escolaridade obrigatória.

 

Como tem sido vivido este período de stand by’ no mundo?

 

Tenho pintado bastante e as mostras de trabalhos são, sobretudo, nas redes sociais. O resultado tem sido positivo, ao contrário do que podia esperar, tenho vendido alguns trabalhos e tenho encomendas para os próximos meses.

 

O que tem na “manga” a curto e médio prazo?

 

Comecei a trabalhar num tema que liga o interior ao litoral. Estão previstas duas exposições, uma para o Algarve e outra para a zona de Setúbal, mas, por enquanto, não posso adiantar muito mais. Está também prevista uma exposição para a Biblioteca Municipal de Beja - José Saramago, mais uma parceria com o Vítor Encarnação. A exposição é sobre o universo da Alice no País das Maravilhas, terá ilustrações minhas e textos do Vítor.

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