Foi apresentada ao público, dia 7 de janeiro, na Biblioteca Municipal de Beja, a “WOS – Women On Scene”, revista que se dedica ao empoderamento feminino na área do teatro e da performance e que pretende “dar voz a tantas vozes silenciadas pelo sistema”. O “Diário do Alentejo” falou com Gisela Cañamero, dramaturga, encenadora e diretora artística da companhia de teatro Arte Pública, sediada em Beja, e coordenadora deste projeto editorial.
A revista pode ser adquirida na Oficina Os Infantes, em Beja, ou encomendada através do endereço womenonscene@gmail.com .
Texto José Serrano
Qual a génese deste projeto e quais os desafios a que propõe?
A criação da revista “WOS” surge da necessidade de mostrar, inquietar e inquirir, tanto o público como os diversos poderes estabelecidos, acerca da ausência da representatividade da mulher na sociedade portuguesa. O grande desafio e contributo desta publicação é a amostragem do trabalho artístico e do posicionamento ético, social e político de criadoras portuguesas nas artes performativas, dando-lhes justa visibilidade através da necessária e urgente discriminação positiva – neste território europeu onde nos encontramos, aparentemente equitativo em relação às oportunidades entre homens e mulheres, mas ainda dominado por inúmeros preconceitos e omissões.
O que podemos encontrar nas páginas deste número de estreia da “WOS”?
Encontraremos a voz de cerca de 40 criadoras multifacetadas – díspares na sua proveniência, fixação ao território, opções artísticas, percurso e idade – que, ao assinarem estes depoimentos, afirmam ideias e identidades que tornam visível o seu âmbito de intervenção, bem como a contextualização política e social do seu trabalho criativo. É-nos mostrado, de um modo pessoal e, por vezes, confessional, como cada uma projeta o seu modo de viver e de partilha, na reflexão, vivência e transfiguração do mundo. Além disso, veremos um trabalho gráfico cuidado, com 160 páginas a cores, o que torna a “WOS” num objeto de grande qualidade estética, conforme as muitas opiniões que nos têm chegado.
Pretende este projeto abanar consciências, no que respeita à igualdade de género?
Quando falamos da ausência de visibilidade e de representatividade da mulher na sociedade portuguesa, temos de entender que esta falta é visível em todas as áreas de atuação qualificadas – apesar de elas ultrapassarem, em número e em qualificação superior, os colegas masculinos. Em pleno século XXI, o espaço e a voz que são dados aos rostos, aos nomes, aos protagonistas do dia-a-dia continuam a construir esmagadoramente um perfil do atuante masculino. Pública e diariamente, parece que continuamos nos primórdios do século XIX, com a mulher recatada, recolhida e remetida às tarefas da casa – quando o que se passa é o oposto. Também nesta área do Teatro e da Performance notámos essa lacuna: onde se encontravam elas, as criadoras, as atuantes, as diferenciadoras, as enzimáticas criaturas que trabalham e mostram a sua perceção do mundo, transfigurando-o e ampliando-o em cena?
Quais as razões, no seu entender, desse anacronismo de que fala?
Porque é que o receio pela mulher-atuante, protagonista da sua história ou da história da comunidade, continua tão evidente? Se é esclarecida é “arrogante”, se decidida é “impositiva”, se transgressora, uma “galdéria” ou uma “louca”. Mas a grande questão do medo tem exatamente a ver com esta transgressão, esse rompimento dos estereótipos de género que lhe continuam atribuídos, o grande medo da dominação através do poder que esta Mulher possa ter. Poder adquirido e exercido através da sua profissão, do seu mandado, da sua autonomia, da sua posição ideológica, da sua atuação – que se presta, na esfera pública, a todo o tipo de enxovalhos, piadas, acusações.
Que exemplo, desse receio de mulher-atuante, considera paradigmático?
Um bom exemplo é a discussão criada em torno das quotas exigidas para os cadernos eleitorais dos partidos. Sempre que ouço ser atirada como justificação a questão do “mérito”, pergunto-me se aquelas pessoas falarão a sério. É que, para sermos honestos, nas próprias instituições públicas, a quantas mulheres reconheceríamos muito mais mérito para o desempenho das funções exigidas por cargos de efetivo poder, em detrimento dos seus pares masculinos?
É esta, no sentido de luta pela equidade de oportunidades, uma revista feminista, dirigida a mulheres e homens?
Sim, é uma revista feminista, pela força e poder que aquelas páginas transmitem, que contagiam quem as lê. E apraz-me muito dizer – porque isso denota também a qualidade dos depoimentos – que o discurso mais feminista, inserido nesta primeira publicação, é feito por um homem.
Como classificaria as oportunidades de entrada das “mulheres em cena”, nas mais variadas áreas, na nossa região?
O que se passa – na política, na gestão da ‘res publica’, da defesa de um ideal de vida em comunidade – é um verdadeiro escândalo, um cancro social. As estruturas de poder, locais e regionais, representadas nos órgãos sociais das Comunidades Intermunicipais do Baixo Alentejo, do Alto Alentejo, do Alentejo Central e do Alentejo Litoral apresentam 49 homens e 4 mulheres – e nenhuma em cargo de poder de orientação ou executivo. Quem é que pode achar normal que mais de 700 mil habitantes (onde, por certo, as mulheres estão em larga maioria) deleguem ser representados por uma tal gritante desigualdade? Como se pode aceitar, em democracia, este verdadeiro entrosamento no poder por parte de um género, às custas do afastamento de outro? A única conclusão é a de que algo está a funcionar muito mal nas estruturas sociais e políticas, onde se alicerça a nossa democracia.
Pretende esta revista ter uma abrangência nacional?
A “WOS” é uma coprodução da Arte Pública e das Produções Acidentais (Almada) – com o apoio das Câmaras Municipais de Beja, Loulé, Almada, e da Direção Regional de Cultura Alentejo – que agrega 43 colaboradores, de Loulé ao Porto, tendo assim uma abrangência nacional. A revista foi lançada em novembro de 2020, na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, teve depois a apresentação em Beja a que se seguirá a de Almada. Outras apresentações, de norte a sul do país, estão a ser solicitadas, dado o interesse que tem suscitado entre criadores, programadores, investigadores e público em geral.
É este projeto, para além da sua base informativa e de reflexão, um manifesto conjunto de resiliência?
Quem lê todos estes testemunhos fica com essa ideia, sim. E não nos esqueçamos que estas reflexões foram escritas numa altura de grande privação pessoal e angústia por parte da maioria das colaboradoras, que viram a sua atividade cancelada ou drasticamente reduzida devido à pandemia.