Diário do Alentejo

O lado oculto do “eldorado” alentejano

02 de dezembro 2022 - 10:15
Polícia Judiciária desmantela estrutura criminosa organizada, no Baixo Alentejo
Foto | José Serrano/ArquivoFoto | José Serrano/Arquivo

A mega operação da Polícia Judiciária, que decorreu recentemente, no Baixo Alentejo, envolvendo 400 operacionais, levou à detenção de 35 pessoas, indiciadas, entre outros crimes, da prática de associação criminosa e tráfico de pessoas, constituindo-se, alegadamente, como uma estrutura criminosa, dedicada à exploração do trabalho de cidadãos imigrantes, em explorações agrícolas, na região. O “Diário do Alentejo” ouviu alguns dos intervenientes das “forças vivas” de Beja, sobre este atual e gravíssimo problema social, de caminhos marginais.

 

 

Texto José Serrano 

 

No âmbito do inquérito titulado pelo Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, a Polícia Judiciária (PJ), através da Unidade Nacional Contraterrorismo, desencadeou, no passado dia 23 de novembro, uma mega operação, envolvendo cerca de 400 operacionais, em várias cidades e freguesias da região do Baixo Alentejo, tendo procedido ao cumprimento de 65 mandados de busca domiciliária e não domiciliária, e à detenção de 35 homens e mulheres.

 

De acordo com comunicado da PJ, os suspeitos, com idades compreendidas entre os 22 e os 58 anos, de nacionalidades estrangeira e portuguesa, “encontram-se fortemente indiciados pela prática de crimes de associação criminosa, de tráfico de pessoas, de branqueamento de capitais, de falsificação de documentos, entre outros”, e integram uma “estrutura criminosa dedicada à exploração do trabalho de cidadãos imigrantes, na sua maioria, aliciados nos seus países de origem” – tais como, Roménia, Moldávia, Índia, Senegal, Paquistão, Marrocos, Argélia –, para virem trabalhar em explorações agrícolas, na região.

 

Em consequência desta ação policial, cuja investigação terá começado há cerca de um ano, da qual resultou ainda “a apreensão de vários elementos probatórios, bem como a identificação de dezenas de vítimas”, a agência “LUSA” noticiava, dia 26 de novembro, que segundo o despacho do Tribunal Central de Instrução Criminal, o juiz Carlos Alexandre, após o término dos interrogatórios aos indiciados, determinou a prisão preventiva para 31 dos 35  arguidos, “oito dos quais com possibilidade de ficar em prisão domiciliária com pulseira eletrónica, caso o relatório da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, que vai avaliar as condições pessoais e sociais seja favorável”.

 

O principal fundamento do juiz para a prisão preventiva destas mais de três dezenas de pessoas, é “o perigo de fuga”. Os restantes quatro arguidos, todos portugueses, saíram em liberdade com Termo Identidade e Residência, proibição de contactos e apresentações periódicas diárias às autoridades.

 

Alberto Matos, presidente da Delegação de Beja da Solidariedade Imigrante – Associação para a Defesa dos Direitos dos Imigrantes, congratula-se com esta operação, “oportuna, louvável do ponto de vista repressivo, que corresponde a factos suscetíveis de queixa apresentadas há mais de um ano”, considerando, contudo, a urgência de “agir a montante, prevenindo e tomando medidas estruturais, para impedir que estas situações possam acontecer”.

 

Medidas que, de acordo com este responsável, passam pela “responsabilização direta dos donos das terras, utilizadores desta mão-de-obra”, à qual “fecham os olhos se é escrava, se está sujeita a intimidação, se sofre uma exploração absolutamente desumana, se tem condições de habitação absolutamente incríveis – não é nada com eles.

 

O agronegócio, cujos maiores detentores na nossa região são portugueses e espanhóis, lava as mãos, mas era necessário responsabilizá-los – quando há crime, que toda a cadeia seja responsabilizada”.

 

Alberto Matos sublinha ainda a incompreensão de não existir, “praticamente, emprego direto na agricultura”, havendo apenas, subcontratação. “Isto é algo que tem de mudar – e o Governo pode fazê-lo, fiscalizando o uso da subcontratação –, só não muda porque há interesses muito poderosos que estão por detrás de isto tudo. O lucro máximo é que manda, o tráfico humano e a exploração laboral, em áreas destas, são o maior negócio do mundo – não há tráfico de armas ou de droga que ultrapasse estas margens de lucro, isto dá para estas pessoas estarem muito acima e controlarem os poderes”. E conclui, acentuando: “enquanto ao nível político mais elevado não se mudar o sistema económico e agrícola, andaremos sempre a correr atrás do prejuízo”.

 

Por sua vez, Rui Garrido, presidente da ACOS – Agricultores do Sul, repudia a imputação de quaisquer responsabilidades aos agricultores, face a este flagelo social de exploração humana, considerando que se alguém assim o considerar é porque “tem um desconhecimento completo do problema” ou porque quer “denegrir a imagem da agricultura, pois o agricultor está aqui no final da cadeia, não tem, diretamente, nada a ver com isto”.

 

E esclarece: “nós contratamos uma empresa, para virem trabalhadores fazer uma plantação, uma colheita de azeitona, o que for – nós não sabemos onde é que essas pessoas, que estão a trabalhar nas nossas propriedades, vivem, nem em que condições vivem, mas, naturalmente, que se suspeitarmos de alguma coisa, somos os primeiros a avisar”.

 

E prossegue: “se não houvesse mão-de-obra imigrante, vinda dos países asiáticos, africanos e da Europa, não se conseguia apanhar nem tanta fruta, nem tanta azeitona, nem tantos legumes. Esta mão-de-obra é fundamental, para nós, e este é um problema que não pode ser solucionado sem os agricultores, que querem ajudar a resolvê-lo”, sendo que, nesse sentido, são “necessárias fiscalizações, mais controlos, porque estes imigrantes têm que vir com condições e ordenados dignos, não podem ser escravizados – é inconcebível existirem, em pleno século XXI, redes de tráfico de pessoas” afirma.

 

Também Francisco Palma, presidente da Associação de Agricultores do Baixo Alentejo, considera não caber “aos empreendedores, às sociedades, sejam de que natureza for, o papel de fiscalizador das condições de trabalho, de habitabilidade, de legalidade de cada trabalhador que está no País”.

 

Isto porque, considera, “embora os agricultores, os comerciantes, os industriais, os homens ligados à construção civil, precisem das pessoas – é um facto –, já tendo que atender a tantas obrigações que hoje em dia o Estado lhes põe em cima, parece-me ser um exagero o escrutínio de cada trabalhador que entra nas suas empresas, colocando-se o problema sempre sob os empresários, que são quem faz mexer a economia”.

 

Para Francisco Palma, o alerta social a que hoje se assiste está relacionado com a incapacidade das autoridades competentes em “regular os fluxos migratórios que estão a acontecer e, portanto, temos o cenário que temos. Agora foi em Beja, amanhã pode ser no Rossio ou no Martim Moniz ou noutro sítio qualquer do País – precisamos de mão-de-obra imigrante, mas ter uma porta escancarada à entrada de quaisquer pessoas, a qualquer custo e de qualquer maneira está a causar um problema e um mal-estar sociais – veja-se o caso dos timorenses que estão em Beja, que já estiveram em Serpa, sem que ninguém perceba como ou por que razões vieram para cá. Se as pessoas imigram, vêm à procura de uma vida melhor, por isso é preciso que existam condições dignas para os receber. Não é virem, sem qualquer controlo, e depois logo se vê – evidentemente que nestas situações existem sempre pessoas que se aproveitam, que exploram outras”.

 

Assim, o presidente da Associação de Agricultores do Baixo Alentejo realça a necessidade de as autoridades competentes exercerem um maior controlo sobre as empresas de trabalho temporário, de prestação de serviços, “sobretudo quando oferecem essa mão-de-obra aos vários setores, não só à agricultura, de maneira a que haja uma fiscalização das pessoas afetas a essas empresas – hoje em dia parece-me que isso não existe, que o Estado não o faz, que não cumpre o seu papel de regulador”.

 

Francisco Palma revela ainda que a Confederação dos Agricultores de Portugal “já estabeleceu protocolos com o Governo de Marrocos, nos quais os imigrantes que queiram vir trabalhar para Portugal se inscrevem nos centros de emprego, ou correspondentes, em Marrocos, e vêm para cá, sabendo ao que vêm, para fazerem um determinado trabalho, ao longo de um determinado tempo, e depois voltam para o seu país – é um primeiro passo”, acentua.

 

Ainda relativamente a esta operação policial e às deteções efetuadas, Isaurindo Oliveira, presidente da Cáritas de Beja, considera, “sem ter qualquer outro tipo de informação adicional, para além desta que vem a lume”, que a “ação peca por tardia”, uma vez que, declara, “há muitos anos, que todos nós, que andamos por Beja, ouvimos falar das mesmas pessoas e em alguns nomes que agora surgiram”, questionando o porquê de a ação só agora se ter desenvolvido.

 

“A melhor maneira é atacar o mal pela raiz, quando ele nasce, porque quando o deixamos solidificar, quem se trama é sempre ‘o mexilhão’, que, neste caso, são todas estas gentes desprotegidas, o que tem conduzido a situações cada vez mais dramáticas, como é o aumento vertiginoso do número de pessoas sem-abrigo, muitos deles imigrantes, em Beja, – este boom populacional imigrante surgiu, há cerca de 10 anos, de forma repentina, nada estava previsto para que isso pudesse vir a acontecer, nada estava preparado, e o território não tem condições para albergar toda esta gente”, assegura.

 

Não acreditando que existam, atualmente, “condições para que o problema cesse”, em virtude da sua complexidade e vastidão, ainda “longe de ter atingido o pico – uma vez que a área abrangida pelo Alqueva não está ainda toda cultivada, as culturas são permanentes e exigem muita mão-de-obra, que não existe no País e tem de ser importada”, Isaurindo Oliveira crê, ser possível atenuá-lo.

 

Para tal, e ainda que “tudo isto – os problemas de condições de habitabilidade, na área da saúde, nos contratos, que são um pouco mafiosos – seja extraordinariamente difícil de combater”, será fundamental, sublinha, um trabalho articulado, “que, claramente, não existe”, entre todas as entidades públicas, privadas, individuais e coletivas e as autoridades, “para que se possa meter alguma ordem nisto, nestes negócios ilícitos, eliminando alguns dos seus agentes – caso contrário estou convencido que este problema tem tendência a agravar-se”.

 

O presidente da Cáritas de Beja considera, no sentido de se conseguir minimizar o problema, a necessidade de se proceder, de forma célere e continuada, à fiscalização das empresas fornecedoras de trabalhadores, “para que todos percebamos as suas condições de funcionamento, pois os imigrantes são pessoas altamente vulneráveis e, muitas das vezes, os contratos não são respeitados e é-lhes cobrado tudo e mais alguma coisa – ainda há dias apareceu, na Cáritas de Beja, um cidadão com um recibo de uma manifestação de interesse, que custa, quando muito, dois euros e meio e aparecia lá, a ser cobrado, 300 euros – se não houver fiscalização e controle, é evidente que tudo o que se possa fazer é em vão, porque o negócio está estabelecido e as pessoas envolvidas vão continuando, sem escrúpulos”.

 

 

Multimédia0FOTO | RICARDO ZAMBUJO

 

REAÇÕES DOS PARTIDOS, COM DEPUTADOS ELEITOS POR BEJA, À OPERAÇÃO POLICIAL DESENCADEADA 

Partido socialista (PS)

Pedro do Carmo, deputado do Partido Socialista, diz ter assistido a esta operação policial “com satisfação, porque vejo o Estado de direito a funcionar, ou seja: as questões criminais de investigação são das autoridades judiciárias – esta é a questão essencial. Pelo que percebemos, foi uma investigação longa, visando identificar máfias, algumas delas a funcionar desde os países de origem, que trazem para o nosso País esta mão-de-obra e que, depois, a escravizam, vivendo à sua custa. São crimes inqualificáveis que têm de ter mão pesada. Lamentamos, por vezes, que a atuação tenha demorado muito tempo ou que peque por tardia, mas o que é facto é que a recolha de provas, a identificação, tudo isso, tem que ser feito com todas as cautelas, para que, efetivamente, estes crimes não fiquem impunes”.

 

Desta forma, o deputado socialista considera, com o objetivo de prevenir este problema social, a necessidade de existir uma forte articulação tripartida, “entre os privados – que é quem recebe a mão-de-obra –, as autoridades nacionais e as autoridades locais, para que se identifiquem e se evitem estes problemas”.

 

Pedro do Carmo, sublinhando ser importante, para a região, continuar a receber trabalhadores estrangeiros, acentua a imprescindibilidade de lhes serem dadas “condições de integração”, cumprindo, para com estes imigrantes, “todas as regras que temos para os cidadãos de origem – é vital que assim aconteça, se assim o fizermos estas máfias acabam por ter que deixar de atuar”.

 

O deputado, declarando a sua convicção de que esta ação policial marcará o momento do princípio do fim deste problema, realça a importância de a questão se constituir como interesse global da sociedade: “todos nós temos que fazer o que estiver ao nosso alcance para ultrapassar esta questão, comunicando e condenando socialmente quando temos conhecimento de abusos – todos, com os instrumentos disponíveis, temos de fazer alguma coisa, neste combate”.

 

Partido Comunista Português (PCP)

A Direção Regional do Alentejo do Partido Comunista Português, através de comunicado de imprensa, considera que a operação policial desencadeada “apenas peca por tardia”, recordando os alertas suscitados “em iniciativas do deputado do PCP, João Dias, nas quais questionou o governo sobre os indícios existentes e a situação nas explorações agrícolas da região” exigindo “uma ação determinada, célere e consequente do Governo e das autoridades competentes em defesa dos direitos laborais, sociais e humanos destes trabalhadores, independentemente da sua naturalidade ou nacionalidade”.

 

O comunicado, sublinhando que “as realidades que são agora objeto da intervenção das autoridades policiais confirmam “apenas uma parte das inúmeras situações de sobre-exploração e negação dos mais básicos direitos laborais e sociais a milhares de trabalhadores na região Alentejo”, refere que “a presente operação da Polícia Judiciária está longe de esgotar os meios de que o Governo dispõe para fiscalizar, prevenir e combater estes crimes”, sendo necessário que “por via de diversos meios e instituições, como a Autoridade Para as Condições de Trabalho, a Segurança Social, o SEF e outras, o Governo intervenha de forma permanente para pôr cobro a autênticas redes organizadas e ‘máfias’ e para procurar criar condições de acolhimento, integração, habitabilidade, regularização e garantia de vínculos laborais, que garantam direitos e dignidade a todos os trabalhadores, nacionais e migrantes”.

 

Na nota de imprensa, pode-se ler ainda, para além de outras considerações, que o PCP, considerando como “positiva a ação, visando as redes de imigração ilegal e de tráfico de seres humanos, ela só poderá ser efetiva, coerente e consequente se forem cabalmente identificados, acusados e condenados todos aqueles, designadamente proprietários e empresas de nacionalidade portuguesa e estrangeira, que enriquecem à custa deste tipo de contratações criminosas”.

 

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