Diário do Alentejo

Gonçalo Naves: "Penso que se nasce poeta e nos tornamos romancistas"

16 de maio 2022 - 11:00

Gonçalo Naves tem 25 anos, diz-se enraizado à família e à sua terra, que é Sines, e representa uma das promessas da literatura alentejana. O seu tempo, de momento, é partilhado entre Lisboa, onde tem a sua atividade profissional, e a cidade do litoral alentejano, onde é vereador na Câmara Municipal, eleito pelo MAISines nas últimas autárquicas.

 

Do seu contacto intimista com o universo das letras, destaca-se a publicação do romance «É no Peito a Chuva», publicado em 2017, com a chancela da A da Artes; a incursão pelo universo das publicações, assumindo-se como autor e diretor da revista «devaneio», que já conta com nove números editados e a caminhar para o décimo; e a publicação de vários artigos em órgãos de comunicação social regionais e nacionais.

 

Texto Luís Miguel Ricardo   

 

Quando e como foi descoberta a vocação para as letras? Eu aprendi a ler muito cedo, porque tenho uma avó que foi professora primária e fez questão de mo ensinar. Depois acabei por estudar ciências no secundário, mas a certa altura percebi que tinha mais jeito para falar e escrever do que para a matemática. Não sei se se trata exatamente de uma vocação, mas tenho, sem dúvida, mais à vontade nesta área. Gosto e divirto-me muito em quase tudo o que faço.

 

Qual o registo literário de eleição? Eu gosto de ler praticamente tudo, com destaque para poesia e romance. Para a poesia, creio que é preciso génio puro e duro, para o romance, nem tanto. Penso que se nasce poeta e nos tornamos romancistas. Agora sou obrigado – mas é uma obrigação de que gosto – a ler também muitos ensaios e textos científicos, da minha área de estudos, que é Ciência Política e Relações Internacionais.

 

Quais as motivações para escrever? É uma pergunta aparentemente simples, mas que na realidade é bem complexa. Penso que nunca percebemos exatamente quais as verdadeiras motivações por que fazemos algumas coisas. Mas eu senti uma predisposição para começar a construir uma obra, e não pararei. Quanto às inspirações, diria que há duas fontes obrigatórias. As obras de outros artistas – não só de escritores – e o mundo, as suas pessoas, a maneira como se fala, a vida desta pessoa, a história concreta daquela outra, a maneira como esta reagiu, etc., etc. É preciso estar atento ao mundo e à nossa terra.

 

Que papel desempenha o Alentejo na literatura de Gonçalo? Diria que a minha terra desempenha um papel importante em tudo o que faço. É importante termos as nossas raízes bem estabelecidas em algum lado. Pode ser numa terra, num grupo de amigos, na família. Creio que só a partir desse momento é que se pode almejar a construir alguma coisa sólida e com futuro. Mas admito outras visões a este respeito. Há uns tempos falava com uma pessoa que me dizia exatamente o contrário, garantia-me que se sentia uma pessoa do mundo todo e sem poiso fixo, e que só assim se sentia bem e conseguia dedicar-se às suas coisas. Não é assim que sucede comigo, mas respeito.

 

“Revista Devaneio”. Que projeto é este? A “Devaneio” é um projeto nascido em 2019. É um movimento cultural, que neste momento se materializa sobretudo através da publicação da revista, que é trimestral e gratuita. Já participaram na “Devaneio” mais de 150 jovens, oriundos um pouco de todo o país, com destaque para Sines. Temos três vetores: incentivar a criação artística, a participação política e a consciencialização social. Queremos ser um palco para os jovens mostrarem os seus trabalhos. Vamos para o nosso 10.º número e o percurso está a ser feito com solidez.

 

«É no Peito a Chuva». E este romance, o que é e que influência teve na definição do percurso literário de Gonçalo? É um romance com um enredo muito simples, que escrevi quando era muito jovem e que teve o seu momento. Serviu sobretudo para eu tecer alguns comentários em relação a várias matérias da vida e do mundo, bem como para tentar trabalhar um pouco com a nossa língua. Quis começar a procurar uma maneira de captar com rigor a forma como as pessoas falam e se expressam nos vários momentos. Penso que é uma dimensão da nossa língua que me agrada muito. Trata-se, como referi, de um romance muito simples, mas que serviu para eu me aperceber que quero, de facto, continuar a escrever.

 

 

Alguma situação inusitada experimentada ao longo do percurso literário? Em 2018 estive num evento literário, o Printemps Littéraire, que decorreu na Bélgica. Estava numa mesa-redonda com vários outros autores, incluindo uma senhora brasileira, bastante conhecida no meio e que disse uma frase que talvez se encaixe na pergunta que é feita: “Nós brasileiros falamos a língua dos estupradores das nossas avós”.

 

Qual a opinião sobre o universo literário em Portugal e no Alentejo? Há várias pessoas muito mais habilitadas do que eu para falar sobre essa matéria. Ainda assim, creio que há um problema crónico, transversal a várias manifestações artísticas: a do subfinanciamento. As artes em Portugal só muito raramente geram riqueza, e conseguem subsistir. Há autores que produzem livros de poesia fantásticos, através dos quais ganham algum respeito dos seus pares. Depois vamos ver as vendas e o livro vendeu entre 300 e 400 exemplares num ano. Um livro que tenha um PVP (preço de venda ao público) de, por exemplo, 15 euros, tem de pagar a um conjunto numeroso de pessoas e entidades: ao autor, à editora, à livraria, à distribuidora... 

 

E o acordo ortográfico. Qual o posicionamento face à polémica? Os objetivos e intenções do acordo ortográfico eram – ou são – claros: unificar a língua portuguesa e construir uma ortografia comum aos vários Estados. Não estou a fazer nenhum juízo de valor quanto a este objetivo, mas é um facto que o resultado foi negativo, quase trágico. A tentativa de unificar resultou numa desunificação muito maior do que aquela que havia antes. Por vezes só se deve mudar quando estamos absolutamente certos de que a mudança será para melhor.

 

Como tem sido vivido este período insólito no mundo? Penso que se trata de um momento a que ninguém, ou quase ninguém, pode fugir, não é? A criação, para mim, depende de uma constante dialética entre olharmos para dentro e para fora. Este momento muito particular pode servir para isso. À parte esse aspeto, é vergonhoso – e quero sublinhá-lo – aquilo a que assistimos na Ucrânia, com um Estado soberano a ser invadido por outro e a provocar-se a maior movimentação de pessoas na Europa desde a 2.ª Guerra. Por vezes é importante termos posições claras em relação a alguns assuntos.

 

Que sonhos literários moram em Gonçalo Naves? Diria, duma forma simultaneamente muito simples e honesta, que gostava de continuar a ter saúde e força para me dedicar à minha obra. Creio que o resto surgirá naturalmente.

 

O que está na “manga” a curto e médio prazo? Do ponto de vista literário, tenho um projeto de médio-longo prazo, talvez para os próximos 8/10 anos. Escrever uma trilogia sobre três vícios: a droga, o álcool e o jogo. O primeiro volume está já a fazer o seu caminho. Estou também dedicado, na universidade, a um projeto interessante: estudar o voto obrigatório, os seus méritos e problemas. Penso que o que importa é continuar o caminho com solidez e tenacidade.

 

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